sábado, 21 de dezembro de 2019

Papa Francisco


O Papa Francisco veio resgatar o que de mais puro, mais santo e mais humano está contido na mensagem de Jesus. Esse papado de Francisco é um tremendo chacoalhão nessa cristandade adormecida há anos, há centenas de anos. É uma sacudida nas estruturas dessa Igreja construída em cima de mentiras, de guerras e politicagens desde a Idade Média. E esse santo Papa Francisco surge neste momento em que essa “velha” igreja, essa secular “cristandade” assiste a esse paradoxo de perder popularidade para o crescente fundamentalismo evangélico que, por ironia, faz uso das mesmas estratégias de ilusão, exploração e manipulação que ela própria um dia usou para dominar. A questão é que a “velha” igreja reinou em tempos de ignorância quase coletiva e hoje vivemos o tempo da comunicação, em que o conhecimento está cada vez mais sendo disseminado. Dominar e manipular hoje as camadas que ainda permanecem ignorantes se faz através de ações imorais, de “fakenews”, de jogadas espúrias onde a arrecadação milionária de dízimos cria verdadeiros impérios. Neste início de século XXI, a Igreja encontrou-se diante de uma encruzilhada. Por um lado, poderia seguir sua antiga trajetória, mantendo suas estruturas rígidas, sua secular cumplicidade com os poderosos, sua antiquada e superada fixação em impor a si mesma e a seus fiéis padrões de conduta e interpretações não mais condizentes com esse mundo atual que questionou tudo e colocou tudo de pernas pro ar, debochando e desprezando valores antes considerados sagrados. Tal qual vai acontecer com esse fundamentalismo evangélico que se espalha nas camadas menos instruídas das populações, também a Igreja não foi capaz de, nesses dois mil anos, de despertar a consciência humana, em sua dimensão planetária, no sentido de tornar esse mundo mais amoroso, mais pacífico, mais inclusivo, em sintonia com a verdadeira mensagem de Jesus. A outra opção da Igreja está acontecendo pelas mãos desse santo Papa Francisco. A cada dia, a cada seu novo pronunciamento, uma luz de esperança surge de que a mensagem de Jesus possa ser ouvida nos quatro cantos da terra, a verdadeira mensagem que não se atrela à moralidade e aos costumes de uma época. O amor está além de qualquer variação história, seja ela econômica, política ou moral. O amor anunciado por Jesus é tão atual na velha Jerusalém, como nas periferias das grandes cidades de hoje. A carência desse amor nas práticas humanas é tão atual no antigo império romanos como nas modernas formas de imperialismos. E para a alegria de nossa alma, para o bem da humanidade, o Papa Francisco tem sido muito fiel e essa verdadeira e profunda mensagem de Jesus. A cada dia ele nos surpreende com uma nova atitude, um novo pronunciamento que parece estar desempacotando, trazendo de novo à luz, o verdadeiro sentido da fé e do amor de que nos falou Jesus, e que por muito tempo esteve atrelado a interpretações e manipulações.
Mas esse mundo dos homens sempre foi dominado pelos que ambicionam poder,  dinheiro e prestígio, esteve sempre sob a tutela da aliança entre esses poderosos e a religião. Assim foi desde as civilizações do antigo Egito e Mesopotâmia até os dias de hoje. Os líderes religiosos sempre estiveram ao lado dos reis, imperadores, presidentes e ditadores ao longo da história humana. Contestar a concentração de renda e de poder sempre foi tido como conspiração subversiva. A própria história de Jesus e sua condenação pelos poderosos da época é uma prova disso. E, na época, o povo dominado e manipulado pela aliança entre o poder político e os ditos religiosos da época, ajudou a condenar Jesus, devido à sua ignorância, à sua inconsciência. Esse é risco que corre o Papa Francisco, em sua corajosa ousadia de querer defender e difundir a mensagem de Jesus nesse mundo onde a ignorância e a inconsciência das populações também são dominados pelos poderosos em suas parcerias com aqueles que se autoproclamam líderes cristãos, aqueles que fazem uso de textos bíblicos para justificar suas viagens pessoais de ambição pelo poder e pela riqueza. E, infelizmente, sabemos que o Papa Francisco sofre acirrada oposição dentro da própria Igreja por aqueles que estavam acostumados à velha parceria com o “stablishment”. Por outro lado, o Papa Francisco está trazendo de volta à comunidade cristã, muitos que estavam desiludidos, mas que hoje conseguem ver nele uma luz, um fio de esperança nesse mundo de violência, de desrespeito humano, de preconceitos de todo tipo, de consumismo desenfreado, de falta de amor. Na proximidade dessa data em que se convencionou ser a do nascimento de Jesus, vem um desejo de que o Papa Francisco tenha uma vida longa e que continue trazendo sua luz a muitas trevas que ainda se fazem presentes nesta terra dos homens.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Juiz de Fora que um dia foi a Princesa de Minas


Juiz de Fora, Juiz de Fora. Eu sentia tanto orgulho de ti, quando lia no livro de geografia que eras o 26º maior município do Brasil, com seus 86.813 habitantes, de acordo com o censo de 1950. Eu me lembro dos meus pais e dos vizinhos que traziam suas cadeiras pra calçadas e ficavam a trocar longas conversas, numa época em que a televisão ainda não havia invadido os nossos lares. E a gente, crianças, brincávamos de tudo que era possível, desde pular corda, a passar anel, a pique bandeira e uma série de outras brincadeiras. Não ficávamos até tarde porque tínhamos que acordar cedo para a escola e nossos pais tinham que ir para as fábricas. Sim, as fábricas. Todos, tios e tias, trabalhavam nas fábricas de tecelagem e nas malharias que se espalhavam pela cidade. No final das tardes, a gente apreciava a quantidade de bicicletas dos operários retornando a seus lares. Em agosto o vento soprava e a gente soltava papagaio, que alguns chamavam de pipas. Colocávamos cacos de vidro na linha do bonde para deles fazer pó e colocarmos com cola nas nossas linhas e, quem sabe, capturar algum papagaio no céu de dono desconhecido.
Os anos se passaram e Juiz de Fora crescia devagar. Ainda na adolescência, meu maior prazer era andar de bonde. E quando, pela efervescência dos movimentos estudantis dos anos 60, eu comecei a me interessar por política, eu adorava comprar o Jornal do Brasil nos domingos, o mais volumoso e mais noticioso na época e pegava o bonde de Santa Terezinha que ia e voltava de uma extremidade da cidade e em seguida pegava o São Mateus que ia e voltava de outra extremidade. Enquanto o bonde avançava lentamente, balançando prum lado e pro outro, eu ia devorando os artigos e mais artigos do JB. Que felicidade! E eu já me achava um adulto bem informado naquele vai e vem dos bondes. Nas noites, podíamos nos reunir no Parque Halfeld, em grupos de 10 a 15 amigos, todos adolescentes, falando de nossos sonhos, nossas paixões, nossas limitações. Virávamos a noite nessa tagarelice até o dia raiar e depois voltávamos para casa, cada um contando uma mentira de que dormira na casa do outro amigo. Isso quando não tinha baile no Clube Juiz de Fora e então era justificado que voltássemos mais tarde. E voltávamos a pé, porque o último bonde era à 1 hora da madrugada e os bailes se prolongavam até 2 ou 3 horas. E ninguém queria perder a oportunidade de dançar mais um bolero ou samba canção. Voltávamos a pé para casa, rapazes e moças. As moças muito bem recomendadas por seus pais que confiavam a responsabilidade em um amigo ou irmão ou parente que as acompanhavam. Elas abriam as bolsas e tiravam seus chinelos para trocar pelos saltos altos porque o trajeto era longo. Nós tirávamos as gravatas. Sim, porque o traje exigido para se entrar nos bailes era terno e gravata. E nós não tínhamos mais que 16 ou 17 anos.
Hoje, eu caminho pelas ruas de Juiz de Fora e não reconheço mais aquela cidade. O que restou de algumas poucas fábricas, foi transformado em shopping center, em depósitos, em estacionamentos. Nas ruas não se vê mais crianças brincando. Os bondes? Ah! Os bondes... Considerados obsoletos foram arrancados pela raiz, nenhum trilho restou para contar a história de seus dias de glória. Ao contrário, as ruas se transformaram em pistas de corrida onde motos e carros disputam qual é mais violento, qual é mais barulhento, qual coloca mais em risco as crianças e os velhos. As crianças passaram a ficar retidas em apartamentos, brincando com seus ipads e iphones e não sabem o que é trepar numa árvore nem conhecem pique bandeira. O mundo mudou, o chamado progresso chegou e exige que as pessoas tenham pressa, muita pressa. Todas estão correndo pelas ruas, precisam chegar a algum lugar, ainda que esse lugar não exista. E a pressa é tanta que se esqueceram de como é dar bom dia e boa tarde, de pedir licença, de um por favor e um muito obrigado. As pessoas perambulam pelas ruas feito zumbis, vivem sob tensão, respiram poluição e nem se dão conta desse stress em que estão vivendo. Já se acostumaram.
Por essas e por outras eu dei uma de Manoel Bandeira, e resolvi “ir embora para Pasárgada, pois lá sou amigo do rei, lá eu tenho a mulher que eu quero, na cama que eu escolhi.” Na minha Pasárgada as crianças ainda brincam pelas ruas e se divertem enquanto as galinhas ciscam aqui e ali. Lá eu tenho o bom e carinhoso sorriso da tia Dina que responde ao meu bom dia me convidando prum gostoso café, lá eu encontrei amigos com quem podemos prosear até a prosa se esgotar, lá eu respiro o ar puro e tenho tempo pra ver o pôr do sol e o céu estrelado numa noite de lua cheia. Lá eu durmo na paz e acordo com o canto dos pássaros. Lá eu toco a terra, lá eu semeio e vejo as plantas crescerem. Lá eu vivo.
Minha Pasárgada se chama Conceição de Ibitipoca, e fica bem aqui nos altos da Mantiqueira mineira.

Conceição de Ibitipoca, meu aconchego.


Conceição de Ibitipoca. Esse arraial aqui no alto da Mantiqueira mineira, tão rico de aconchego, de simplicidade, de gente amiga. Ibitipoca, Minas Gerais por excelência, onde a mineirice se revela em sua forma mais pura, onde todo mundo dá bom dia e boa tarde com uma cara boa e um sorriso amigo. Terra de mineiro desconfiado, mas que depois que te conhece, abre os braços e te acolhe, onde os meninos ainda brincam e correm pelas ruas igual aos velhos tempos de nossas infâncias quando poucos carros trafegavam nas cidades. Galinhas soltas ciscam em toda parte e os cães perambulam preguiçosamente pelas ruas. 
Conceição de Ibitipoca, o que você esconde em suas ruas estreitas, em seus casarios centenários, em suas igrejas coloniais? Quantas histórias acumula há mais de 300 anos quando por aqui passaram mineradores, quando chegou a ser uma vila com 5.000 moradores, considerado um importante núcleo urbano para a época.
E o que será que se esconde em suas montanhas e seus vales por onde os pássaros fazem seus desfiles aéreos competindo para ver qual tem plumagem mais colorida e qual tem o canto mais melodioso... E particularmente o que se esconde em seu Parque com suas cavernas, suas cachoeiras, seus remansos, seus cannyons, suas matas, essa joia que resume tudo que há de mais belo na natureza dessa região que atraiu cientistas e viajantes que por aqui passaram 200 anos atrás encantados com as peculiaridades de sua paisagem e flora.
Aqui eu entendi as palavras de Geraldo Azevedo quando disse que Minas é onde o oculto do mistério de escondeu.
Viver em Conceição do Ibitipoca é viver esse mistério oculto, escondido, onde as palavras não são capazes de revelar. Aqui a revelação do mistério se dá no viver, não no falar. Obrigado Conceição de Ibitipoca por me acolher, onde eu finalmente encontrei o meu aconchego.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Estar no mundo sem ser do mundo

Há poucos dias recebi uma mensagem carinhosa de uma amiga querida , que talvez esteja lendo este post. Entre outras coisas, ela me dizia: “quando conheci você, eu o achava carrancudo (rs). Com o passar dos anos vamos vendo tantas coisas (rs). Gosto muito de você.”
Eu lhe respondi: “Você não estava errada. Eu era meio carrancudo mesmo. Precisei de mais uns anos depois do Osho Khalid para caírem umas fichas e me relaxar.”
Há cerca de 30 anos eu recebi uma mensagem do Osho, e a uma pergunta que eu lhe dirigi, ele me respondeu: “Não seja um missionário. Seja a mensagem.”
E durante muitos e muitos anos, sem ao menos perceber, eu segui sendo uma espécie de missionário. Não havia captado a mensagem.
Eu sempre fui um “fazedor” e aprendi com meu mestre que não tinha que brigar com isso, pois esse era o meu “jeitão”, fazia parte do tipo de personalidade que escolhi ser entre as várias opções que me foram dadas ao longo do meu crescimento. A questão não era o “fazer”, mas sim o “como fazer”. Confesso que me esforcei muito em tentar fazer as coisas meditativamente. Anos a fio fazendo Dinâmica, Kundalini, Nadabrahma e tudo o mais. Sem perceber que esse “como fazer” não viria através do esforço.
Grupos e mais grupos de terapia me ajudaram demasiadamente a ser quem hoje sou. Mas foi um processo difícil tal como tirar água na pedra. Foi bem assim. E depois de algum tempo uma filete de água começou a brotar na pedreira.
Abracei de corpo e alma a comunidade dos companheiros de viagem. Muitas belas amizades floresceram e que guardo com carinho no coração até hoje. Mas eu sempre queria “organizar as coisas”.
Eu trazia comigo o espírito de organização que absorvi como bancário do Banco do Brasil e um espírito de luta que aprendi na minha militância politico-estudantil.
Desde a minha primeira ida a Puna em 1987 eu já quis “entender” como funcionava a comuna, como poderia ser um distribuidor dos livros e CDs, como era a “organização”, quem era quem. E voltei organizando e coordenando diversos centros de meditação, integrando o grupo que editava o jornal Osho Times, tornando-me agente da Osho Internacional junto às editoras nacionais que publicavam Osho, criando por sugestão de Puna o Instituto Osho Brasil.
E assim eu fui “fazendo, fazendo e fazendo”. Sempre com a “língua pra fora”, e carrancudo, como diria minha amiga querida.
Certa vez cheguei em Puna exausto. Estava bem esgotado após desenvolver e implantar um amplo projeto de seminários no Banco do Brasil para melhoria do atendimento que atingiu mais de 50 mil funcionários, no qual incluí vários textos seletos do Osho.
Precisava de uma boa massagem e, ao entrar na sala, a terapeuta simplesmente pediu que eu sentasse e contasse o que estava acontecendo comigo. Após, orgulhosamente relatar todo o meu feito, ela me disse: “Osho não está lhe dizendo para fazer isso ou aquilo. Ele está lhe dizendo apenas para ser feliz. Só isso: seja feliz”. Putz! Que ducha de água fria. Eu nem precisei, nem ela me deu a tal massagem. Eu desmontei ali mesmo.
E assim, fui aprendendo passo a passo que a questão não é a meta, mas o caminhar.

Mas a vida é mestra e as curvas e obstáculos do caminho muitas vezes nos ajudam a abrir os olhos e ver coisas até então ocultas, ainda que estejam ali, diante de nossos olhos.
Foi com muita relutância que retornei à minha cidade natal há cerca de 10 anos.
Todos os fantasmas e sombras do passado estavam a postos atrás de cada esquina, atrás de cada pilastra. Eu tive que olhar um a um nos olhos e, para minha surpresa, todos foram se dissolvendo, um a um. Uns mais rápidos e outros mais demorados, mas todos se dissolveram.
E aqui, distante fisicamente da minha tribo de origem, da maioria dos meus velhos e queridos companheiros de viagem eu pude me dar conta de algo que já tinha lido (e traduzido) do Osho anos atrás:
“Essa foi a coisa mais infeliz no passado: discípulos organizaram-se, relacionando-se, e todos eles eram ignorantes. E pessoas ignorantes só conseguem criar mais chateação no mundo do qualquer outra coisa. Todas as religiões têm feito exatamente isso.
Nós já temos sofrido demais devido ao relacionamento direto de discípulos entre si,  criando religiões, seitas, cultos, e depois brigando. Eles não conseguem fazer nada mais.
Pelo menos comigo, lembre-se disso, apenas uma 'amistosidade' líquida, não uma amizade sólida, é suficiente e muito mais bela, sem qualquer possibilidade de causar danos à humanidade no futuro."

Comecei então uma nova etapa em meu processo pessoal de crescimento: Aprender a ser só, ou como diria o Gilberto Gil, aprender a só ser.
Foi o empurrão que eu precisava para parar, relaxar e deixar as fichas caírem, uma a uma.
Eu, sozinho, perambulando pelas ruas, um desconhecido na multidão, sem um centro de meditação para coordenar, sem uma comunidade de amigos para com eles morar, sem uma auto imagem a preservar e exibir... Pouco a pouco fui (meu ego foi) me reduzindo a uma pessoa comum, a um mero transeunte no meio de outros milhares, parando numa padaria para tomar um cafezinho e saborear um pão de queijo como qualquer habitante desta cidade. Nada especial. Eu já não era aquele sannyasin que se “achava” um guardião da mensagem do Osho, aquele que tinha que traduzir mensalmente um novo texto do Osho para publicar no site do Instituto, já não tinha que editar mensalmente o boletim/revista on-line fazendo a conexão nacional dos sannyasins. E pouco a pouco fui deixando uma série de papéis que havia assumido, fui cada vez mais me desnudando. Meu foco foi deixando de ser as grandes coisas, os grandes projetos e comecei a me conectar com as pequenas coisas reais, com os pequenos detalhes da vida, com minhas sensações internas, meus sentimentos mais puros, sem o filtro da mente. Olhar com o coração, ver as pessoas, as árvores, os cães que passam nas ruas.
Me vieram então tantas citações do Osho, muitas delas eu havia lido e repetido feito um papagaio. Numa dela ele dizia:
“A palavra ‘inspiração’ é perigosa.
Primeiro é inspiração, depois se torna seguimento, depois se torna imitação – e você acaba sendo uma cópia carbono. Não há necessidade alguma de ser inspirado por alguém. E não é apenas não ser necessário, é perigoso também. Apenas observando, eu tenho visto... cada indivíduo é único. Ele não pode seguir um outro alguém.
Ele pode tentar – milhões tem tentado por milhares de anos. Milhões são cristãos, milhões são hindus, milhões são budistas. O que eles estão fazendo? A inspiração de Goutama Buda fez milhões de pessoas budistas e agora eles estão tentando seguir seus passos. E eles não estão chegando a lugar algum; eles não conseguem.
Você não é um Goutama Buda e o rastro dele não se ajusta a você, nem os sapatos dele servem em você, você terá que encontrar o tamanho exato de sapato que lhe sirva.
A inspiração tem sido um infortúnio, não uma benção.
Assim, por favor, não se inspire em mim, caso contrário você será apenas uma cópia carbono, você não terá a sua autêntica e original face. Você será um hipócrita: você dirá uma coisa e fará outra. Você mostrará a sua face em situações diferentes com máscaras diferentes, e aos poucos você se esquecerá qual é a sua face verdadeira; são tantas as máscaras...”

Foi aí que comecei meu processo de independência do Osho. Como ele sempre disse que não era muleta nem guarda-chuva de ninguém, eu comecei meu processo de jogar fora a muleta e o guarda-chuva que eu vinha carregando. E simultaneamente fui aprofundando meu processo pessoal de presença, de estar presente aqui e agora, de me desligar do processo mental e deixar fluir, pouco a pouco, as minhas próprias percepções, as minhas puras sensações, deixando que os sentimentos brotassem, os insights acontecessem. Me ajudou muito nesse processo as minhas idas a Ibitipoca-MG, na serra da Mantiqueira, onde minha companheira Nirava tem uma aconchegante casa e um belo terreno de apenas 1.200m2, mas o suficiente para eu aprofundar uma linda relação com a terra. A criação de um jardim, com toda a sensibilidade estética que ele envolve, com toda a delicadeza necessária no trato com as plantas e flores, com o estudo e a compreensão de como funciona o solo, a recuperação do solo, a escolha das plantas mais adaptáveis aqui e ali. E depois, a formação do pomar, o respeito às árvores nativas pré-existentes, as plantinhas nativas cheias de flores delicadas. E num terceiro momento, a horta orgânica, com a imensa satisfação de colher a couve, o alface, o milho, o tomate, a abobrinha e tudo mais.
E no meio de tudo isso, o silêncio das montanhas, quebrado pelo maravilhoso canto dos pássaros, os mais variados. De repente, surge numa árvore um João-Bobo e a gente fica hipnotizado. De outra feita foi uma saíra-sete-cores que nos deixou de boca aberta. Aí surge uma seriema que resolveu nos visitar sem avisar.
E nesse ambiente, o relaxamento acontece, os insights brotam do nada, e a meditação acontece sem qualquer técnica especial.
Mas corro um sério risco de me tornar um escapista. Lembro-me mais uma vez do Osho nos alertando que é fácil ser um meditador nas montanhas; o difícil é ser um meditador na praça do mercado.
Me veio então outro texto primoroso dele:
“(...) Eu sempre quis que o meu povo ficasse no mundo, vindo a mim ocasionalmente, ficando comigo, refrigerando-se, depois voltando para o mundo, porque o mundo tem que ser mudado. Nós não somos aqueles que renunciam ao mundo.
Todas a religiões andaram ensinando: ‘Renunciem ao mundo.’
 

Eu lhes ensino transformem o mundo. (...)
Mas o mundo está onde está o trabalho. Isto aqui é uma escola de mistério. Nós não somos os renunciadores, nós somos os revolucionários. 
Queremos mudar o mundo todo
 

E, ao mudar o mundo, vocês mudarão a si mesmos. Vocês não podem mudar nada mais, a menos que passem através da mudança simultaneamente.

Então me vem essa conexão com o mundo. E eu abro os olhos para ver o mundo dos homens. Para ver essa realidade mais próxima que me cerca, esse nosso Brasil dos brasileiros. E, convenhamos, o cenário não está nada agradável. Todos os dias somos acordados com notícias de novas denúncias de corrupção, de violência, de muita coisa feia que dói os olhos e os ouvidos.
Então, surge o grande desafio: como estar no mundo? É claro que tem a grande máxima: “estar no mundo, sem ser do mundo”. Mas a máxima começa exatamente com o “estar no mundo”. E é claro que cada um tem suas ferramentas, seus instrumentos para ver e se situar nesse mundo.
Minha formação foi em História. Fiz o curso de História, lecionei no ensino médio durante 20 anos, paralelamente ao meu trabalho como bancário. Aliás, ensinar História era o meu grande barato e eu gostava de estudar História, entender o desenrolar do processo histórico, as relações com as mudanças econômicas, a evolução das estruturas de poder, os movimentos populares clamando por igualdade e justiça ao longo dos séculos. Tudo isso deu uma bagagem enorme para minha maneira de ver tudo o que se passa na vida nacional hoje.
Além disso, ainda na minha adolescência, eu participei de um movimento cristão, que abriu muito minha consciência a respeito das injustiças sociais, abriu muito meu coração, para me sentir compassivo e solidário para com todos os meus semelhantes que sofrem as consequências dessas injustiças.
Então, da mesma forma que eu estou conectado à natureza, à terra, às plantas, aos pássaros, aos animais em geral, eu também estou conectado ao mundo dos homens. Da mesma forma que eu quero ver um vídeo do Ernst Gotsch com sua visão profunda e harmônica da Agrofloresta, da mesma forma eu me emociono ao ouvir um Emilio Santiago interpretando Eu Sei que Vou te Amar; da mesma forma que eu divulgo um vídeo que denuncia maus tratos a animais, eu divulgo a condenação da fala hipócrita de um senador que está sendo denunciado por receber propina de milhões de reais.
Entendo que o meu estar no mundo, pressupõe assumir posturas, tomar atitudes com base na compreensão que tenho de tudo o que está me cercando.
Defendo uma série de bandeiras que o espaço aqui é pequeno para enumerar todas. Basicamente defendo direito à liberdade, a uma vida saudável e segura para todos, moradia, educação de qualidade, oportunidades iguais a todos, sem distinção de classe social, de raça, ou do que quer que seja. Sou a favor das bandeiras de defesa ambiental, de defesa das minorias, de defesa dos animais.
Não tenho partido político, mas sou capaz de analisar as bandeiras defendidas pelos diversos partidos e políticos.
Acompanho noticiário político desde meus 15 anos de idade. Hoje estou às portas dos 70 e sei perfeitamente que a corrupção é um dos maiores, senão o maior, dos problemas brasileiros. E não é de hoje.
Mas também sei da existência de todo o poder econômico oculto atrás dos noticiários dos jornais e telejornais, oculto atrás do financiamento dos políticos e seus partidos, tudo em troca da defesa de seus interesses. E esses interesses não têm qualquer compromisso com o bem estar das populações, com aquelas bandeiras que eu citei atrás. Pelo contrário, os interesses dos grandes grupos econômicos seguem noutra direção.
Assim, num momento como este vivido atualmente pelo nosso país, pelo nosso povo, eu sinto que o meu “estar no mundo” significa literalmente estar no mundo. Este não é o momento para “fugir” dos problemas do mundo.
E quanto ao meu “sem ser do mundo”, é o meu desafio pessoal. E enquanto tal, cabe a mim, exclusivamente a mim. É o que Osho diz: “E, ao mudar o mundo, vocês mudarão a si mesmos. Vocês não podem mudar nada mais, a menos que passem através da mudança simultaneamente.
A minha denúncia de uma manobra política para defender interesses ocultos, não pode ser fruto de um ativismo cego e inconsciente. A minha denúncia é a manifestação de minha solidariedade humana, de meu comprometimento compassivo com um povo maltratado e que, inconscientemente é manipulado pelo interesse dos poderosos.
Da mesma forma que sou contra o uso dos agrotóxicos nas plantações, sou contra o uso do poder econômico para manipular a população, como sou contra muitas coisas mais. E nessa população manipulada incluo não só os menos favorecidos social e economicamente, mas aqueles que com um mínimo de instrução e condição material, não têm o discernimento necessário e suficiente para saber que estão sendo massas de manobra.
A cada passo, a cada denúncia, a cada compartilhamento de petições, cabe a mim dar um passo atrás e ouvir meu próprio coração, minha fonte interna de sabedoria, ouvir meu mestre interior. A meditação é o meu canal.
Esse é o meu desafio.

E é muito oportuno lembrar Bertrand Russel, numa entrevista que compartilhei há poucos dias nas redes sociais, “Nesse mundo que está ficando cada vez mais conectado, nós temos que aprender a tolerar uns aos outros, temos que aprender a aceitar o fato de que algumas pessoas dizem coisas que não gostamos. Só assim nós poderemos viver juntos, só dessa forma.”

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Levantando algumas bandeiras

Oração significa uma conversa, uma súplica, um agradecimento ou um ato de louvor diante de um ser, o qual está além da capacidade humana conhecer, que pode ser Deus, um Santo ou uma entidade com poderes sobrenaturais.

Já a meditação acontece quando a mente deixa de lado toda a sua tagarelice interna sem sentido, quando o fluxo de pensamentos para, e, de repente, naquele silêncio você tem a experiência de simplesmente estar presente; uma presença da qual você estava inconsciente, mas que sempre esteve ali. É a presença de sua consciência, de seu ser.

Enquanto a oração leva a uma conexão com algo externo (um Deus, uma Entidade), a meditação leva a uma conexão com o seu ser mais interno. Na oração a mente conversa, na meditação a mente se aquieta. A oração leva você para fora enquanto a meditação traz você para dentro. A oração pressupõe a crença na existência de uma entidade divina externa, a meditação não depende de qualquer crença em divindades externas.

Seria a meditação uma fuga do mundo?

Krishnamurti nos diz “Meditação não é uma fuga do mundo; Não é atividade egocêntrica, isolante, antes, porém, a compreensão do mundo e seus usos.”
Mas ele também diz, “Pouco tem o mundo para oferecer, além de alimento, roupa e moradia, e do prazer e do seu conjunto de aflições. A meditação é um movimento para fora deste mundo; pois temos de ficar fora dele. Aí então é que o mundo tem significação e é constante a beleza do céu e da terra. Então o amor não é prazer.”

Em seu “Discurso do Adeus”(João 17), Jesus se volta para o céu e fala ao Pai, se referindo aos discípulos. Ele diz E eu já não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo” (João, 17-11) e na sequência diz Não são do mundo, como eu do mundo não sou.”(João, 17-16). Resumindo, ele diz que os discípulos estão no mundo, mas não são do mundo.

Osho, que sempre priorizou a meditação, responde a uma pergunta, dizendo, Estar no mundo significa apenas que você estará fazendo um trabalho, que estará ganhando o seu pão, que estará vivendo com pessoas que não têm a mesma mente que você, que estará vivendo entre estrangeiros e naturalmente se sentirá um alienígena. Mas isso é algo pelo qual deve se alegrar. Eu não o mandei ao mundo para se perder. Eu o mandei ao mundo para permanecer você mesmo, apesar do mundo. E esse foi o significado da afirmação original: estar no mundo, mas não ser do mundo. Isso é tão fundamental que permanecerá inalterado.”

Como fica para mim, simples buscador, estar no mundo, sem me perder, permanecendo eu mesmo? E quem é esse “eu mesmo” que não pode ou não deve ser perdido?
Se eu ainda estou no mundo da mente (como suponho estar 99,9% das pessoas) eu leio tudo isso e, é claro, interpreto com o filtro dessa minha mente, carregada de conceitos e preconceitos, de crenças, de ideias e projeções, de interpretações.

Para seguir este meu raciocínio, vou citar Osho mais uma vez: Quando dizemos que o mundo é ilusão, maya, isso não significa que o mundo não exista. Ele existe, mas o modo como o vemos é que é uma ilusão. O que vemos não pode ser encontrado em lugar algum. Nós criamos um mundo em torno de nós mesmos, e cada um vive em seu próprio mundo. É por isso que há uma colisão; mundos colidem, o seu mundo e o meu.”

Será que eu compliquei as coisas, com mais essa citação?
Espero que não. Eu apenas quero fazer uma colocação que para mim é muito oportuna.
E tenho que ter humildade para reconhecer que posso estar totalmente iludido em minha maneira de ver mundo. Mas, neste exato momento, é como eu consigo vê-lo. E entendo e aceito que outras pessoas vejam esse mundo a partir de outras perspectivas. Estarão elas iludidas? Eu não tenha essa resposta. E até que elas exponham suas visões com a devida clareza e fundamentação, e eu as considere plausíveis, eu continuarei discordando de muitas delas, da mesma forma que elas poderão estar discordando de mim. E não vejo nenhum problema nisso.

Vou tentar me colocar de maneira mais clara.
Eu me vejo situado num mundo insano, num sistema que torna as pessoas insanas de tal modo que essa insanidade nem é detectada. O sistema é perverso, impõe uma permanente competição, uma corrida louca atrás de dinheiro e mais dinheiro, de mais poder e mais prestígio; impõe um consumismo desenfreado, uma valorização do supérfluo e do superficial. A busca incessante de lucros e mais lucros, faz com que nossa agricultura e nossa indústria de alimentos estejam mais voltadas para a dimensão negocial do que para a nutrição das pessoas. Estas pessoas, com a correria das cidades, alimentam-se mal, dormem mal, vivem estressadas, seguem hipnotizados pelos seus sonhos de consumo, relacionam-se mal, enfiam a cara nas drogas lícitas ou ilícitas, e o resultado é o aumento considerável na venda de ansiolíticos, antipsicóticos, relaxantes. A indústria farmacêutica agradece, mas isso é terrível.
Também vejo por trás de todo esse cenário, um jogo de poderosos grupos que dominam a situação global e cada vez mais se enriquecem e se tornam mais dominadores. São grupos internacionais do capital financeiro, da indústria bélica, da indústria farmacêutica, do agronegócio, das grandes mineradoras, das companhias de petróleo, como se fosse uma rede que se espalha, financia e controla os políticos, para defenderem seus interesses, e os meios de comunicação para manipularem as grandes massas populacionais como um rebanho. Eu vejo também uma distribuição de renda muito injusta, onde 1% possui tanto dinheiro quanto os 99% restantes da população mundial, num ambiente onde ainda imperam a discriminação e a exclusão social por razões raciais, sexuais, religiosas e etárias. Junto a isso, um crescimento da agressividade, intolerância e violência, não apenas nos ataques terroristas, mas nos simples comentários de redes sociais, revelando que as pessoas perderam o respeito pela dignidade, liberdade e individualidade alheias.

Mas vejo também nesse mesmo mundo a proliferação de estudos e trabalho de pessoas dedicadas a reverter todo esse processo e tornar esse mundo mais humano; vejo ainda organizações e indivíduos se empenhando na revitalização da natureza tão maltratada e desfigurada pela ganância capitalista; vejo o surgimento de políticas públicas para valorizar segmentos discriminados e menos favorecidos da sociedade; vejo movimentos que disseminam respeito à natureza, respeito aos seres humanos, respeito aos animais; vejo ações solidárias a menores abandonados, a vítimas de fenômenos naturais, vítimas de desastres ambientais provocados pela sede de lucros, vítimas de ataques terroristas, vítimas de guerras. E tudo isso tem um valor imenso.

Tudo isso compõe esse mundo em que estou. Com suas insanidades e suas virtudes.
Para mim, o desafio é: como estar nesse mundo, sem ser desse mundo e ao mesmo tempo não ficar cego diante de todo esse cenário?

Por um lado, eu estou buscando meu estado de presença, fazendo experimentos, estou buscando e vivenciando a minha felicidade e realização nos pequenos atos, no aqui e agora. Por outro lado, eu estou no mundo, nesse mundo que eu vejo. E, estando nesse mundo, busco permanecer eu mesmo, em sintonia com meu centro, com minha fonte de discernimento. Grande desafio, eu considero.
E esse mundo que eu vejo, repito, tenho que ter a humildade para admitir que é uma visão com o filtro da minha mente, carregada de conceitos e preconceitos, de crenças, de ideias e projeções, de interpretações. O que aumenta ainda mais o desafio.

Mas, eu tenho também a opção de me alienar e simplesmente ignorar tudo que ocorre ao meu redor. Posso mudar-me para as montanhas e viver com os pássaros e as plantas e evitar qualquer notícia desse mundo caótico.
Posso me comportar como certa pessoa que me bloqueou numa rede social por não aceitar que eu (que ele não conhece pessoalmente, mas que considera espiritual) possa postar conteúdos de política, uma vez que, segundo ele, todo político é corrupto e, toda essa humanidade é desprezível (Como assim!!!???).
Eu acho que seria bom se essa pessoa lesse o texto do Bertold Brecht, substituindo as palavras burro e imbecil, que são muito fortes: O Analfabeto Político.
“O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilantra, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.”

A questão de não ser deste mundo implica questões de ordem subjetiva, de busca espiritual, de silêncio interior, do estado de presença, do aqui e agora.
A questão de estar neste mundo implica a compreensão do que é esse mundo e da trama que existe por trás de tudo que podemos apontar como caótico.
Nesse sentido, se surge um novo movimento na Grécia propondo uma alternativa a esse sistema dominado pelo capital que tudo explora, então eu quero compreender o que é essa nova proposta e quero acompanhar os passos desse movimento. Quero ver se ele é exequível ou não. Talvez esteja aí uma alternativa mais humana para este mundo.
Se um economista como Paul Singer dá uma palestra defendendo que a sociedade precisa da solidariedade para que as pessoas sejam mais felizes e vivam em paz... Eu quero buscar um texto dele sobre o assunto e compartilho com meus amigos. Acho muito legal que ele inclua o quesito felicidade no campo da economia.
Se o Sebastião Salgado apresenta um projeto para ajudar a recuperar o desastre ambiental que atinge o Rio Doce, com base numa experiência bem sucedida dele próprio na recuperação de nascentes e matas, eu quero aplaudir e divulgar, e não dou força à condenação de alguns de que ele teria se vendido à Vale e está apoiado pela Globo para amenizar a responsabilidade da mineradora. Se todos pensarem assim, nenhuma proposta construtiva poderá ser implementada. Eu acredito que existem pessoas interessadas em melhorar a vida do planeta. Quero conhecer e dar força a tudo que vejo como proposta positiva em todos os níveis e em todas as áreas.
Para mim, isso faz parte do “estar no mundo”. Mas eu cuido de não me envolver “de corpo e alma” em movimentos, partidos políticos, seitas. Eu não sou cego para acreditar nas promessas de campanha e sei perfeitamente que a grande maioria de nossos políticos são corruptos e oportunistas. Mas não deixo de acompanhar as propostas, as críticas, as opiniões a respeito de medidas políticas que afetam questões sociais, ambientais, culturais, econômicas. E compartilho tudo aquilo que sinto como benéfico para o planeta e para os seres humanos.

Particularmente nesse quesito – seres humanos – eu tenho procurado, cada vez mais, ser cuidadoso com as pessoas mais próximas e também comigo mesmo, com meu corpo, incluindo aí a alimentação, o sono, a meditação, os exercícios, etc. Busco ampliar esse meu cuidado a todos os seres vivos, à humanidade, aos animais e vegetais.
Para mim, não é possível buscar a espiritualidade, orando ou meditando, e não cuidar do próprio corpo, não cuidar das pessoas mais próximas, não cuidar da humanidade em geral. O difícil mesmo é quando a gente tem que encarar um político corrupto, um criminoso comum ou um terrorista e fazer um namastê (“O Deus que habita em mim saúda o Deus que habita em ti”), afinal, embora cada um tenha histórias de vida diferentes, programações diferentes, lá no fundo todo mundo tem essa fagulha divina.

Se nesse confuso cenário político nacional já não dá para se filiar a um partido ou ser um fiel seguidor de um líder, porque nunca se sabe o grau de comprometimento que este ou aquele assumiu com o financiamento de suas campanhas, ou mesmo qual seu envolvimento com este ou aquele ato de corrupção, eu prefiro seguir o meu caminho, identificando aqui e ali algumas bandeiras que entendo devam ser levantadas e compartilhadas, independentemente da cor partidária que possa trazer consigo. Gosto do movimento das mulheres pelos seus direitos, assim como dos direitos dos homoafetivos; dos movimentos em defesa da causa negra e dos indígenas; gosto das políticas que beneficiam os segmentos mais desfavorecidos da sociedade, como programas habitacionais, maiores oportunidades nas universidades, programas de atendimento médico; gosto do trabalhos de ONGs em defesa do meio ambiente, de proteção das espécies em extinção. Mais do que me comprometer com um partido ou um movimento político, eu tenho optado por apoiar, da forma que sinto serem possíveis para mim, essas bandeiras que tocam a minha alma humana.

“Parece que o homem existe para todos estes tipos de coisas - democracia, socialismo, fascismo, comunismo, Hinduísmo, Cristianismo, Budismo, Maometismo.
A realidade deveria ser que tudo isso existisse para o homem; e o que fosse contra o homem, não deveria de forma alguma existir.
Todo o passado da humanidade está cheio de ideologias estúpidas pelas quais os povos estiveram fazendo cruzadas, matando, assassinando, queimando pessoas vivas. Nos últimos três mil anos lutamos cinco mil guerras, como se a vida fosse para lutar e não para sermos criativos, não para desfrutarmos dos presentes da natureza.

Temos que abandonar toda esta insanidade.” OSHO

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Em paz comigo mesmo

Parece que algo novo teve início exatamente ali, quando eu estava começando a conceber o jardim lá em Ibitipoca.
Na verdade, nada estava se iniciando, pois na época eu já trazia comigo 66 anos de muitas experiências, muitas tentativas e erros e muitas informações, algumas processadas e testadas vivencialmente e incorporadas à minha compreensão do mundo, e outras tantas descartadas por se revelarem sem ressonância dentro de mim.
Mas algo novo teve início ali com o jardim de Ibitipoca.
Primeiro foi a minha entrega àquele verdadeiro ato de criação, procurando vislumbrar um jardim em cima daquele terreno irregular, muito arenoso e cheio de pedras, uma fina cobertura sobre um solo rochoso, com muitos entulhos que sobraram da construção da casa, além de valetas e muito mato.
E a partir desse primeiro passo, foram se sucedendo experiências cada vez mais fantásticas, desde a concepção do desenho à preparação do terreno para receber o jardim, o tratamento do solo, a escolha das mudas, o teste de plantio aqui e ali, a busca constante de uma harmonia visual e energética. Enfim, ao longo de vários meses, o jardim começou a tomar forma.
E paralelamente a todo esse processo começou a crescer dentro de mim uma ligação muito especial com a própria terra. Não seria exagero dizer que dentro de mim cresceu um amor por aquele terreno. Eu comecei a experimentar um prazer imenso ao tocar a terra, ao preparar uma cova para um novo plantio, ao misturar o esterco, ao arrancar ervas daninhas e pedregulhos. Eu enfiava a mão na terra com gosto, com muito gosto. E, de preferência eu colocava roupas velhas e surradas para ficar mais à vontade e poder sentar, me debruçar e até deitar sobre a terra nessa tarefa de formar o jardim.
E como se não bastasse, toda aquela área de Ibitipoca é repleta de pássaros, de cantos e cores variadas. E todo esse meu trabalho de jardinagem sempre foi acompanhado por essa plateia fiel: tico-ticos, canários, coleiros, saíras, maria preta, pintassilgo, beija-flor, e muitos, muitos outros.
Momentos mágicos eram aqueles em que eu, debruçado na terra, dissolvido naquela comunhão com o que sentia ser a própria “mãe-terra”, de repente era despertado por um canto especial. E eu me virava e contemplava aquele novo visitante que parecia estar me chamando e dizendo: eu estou aqui. Momentos em que eu me perguntava: o que mais é preciso para ser feliz?
E da experiência do jardim passei ao pomar no terreno ao lado. Um terreno ainda mais virgem no qual tive o cuidado de respeitar as árvores e arbustos mais originais, assim como o próprio mato e as plantinhas silvestres com suas mais variadas flores que se abrem em épocas distintas do ano. E teve início um outro processo, paralelo ao do jardim. Semelhante e ao mesmo tempo diferente. Enquanto no jardim, em apenas um mês eu já podia perceber se determinada planta se adaptava ou não àquele local, àquele solo, ao Sol ou à sombra, se ela iria florescer ou não, ali no terreno do pomar as coisas aconteciam diferentemente. Só para citar um exemplo, o primeiro pé de caqui que plantei, após um início promissor, cheio de folhas novas, de repente perdeu todas elas e por quase um ano permaneceu apenas aquele galho aparentemente seco até que, já sem esperanças, eu me decidira a plantar uma outra nova muda. Mas, para minha surpresa, de repente, novas folhas surgiram, novos ramos brotaram e aquele mesmo pé de caqui começou a tomar forma de um arbusto já adolescente, cheio de folhas e vida. E essa mesma experiência aconteceu também com a parreira de uva, com a graviola, com a acerola. Com as frutas do pomar aprendi muito na arte de observar, de esperar com paciência, de perseverar, de confiar e de entregar à existência.
Surpresas se sucediam, como aquele pé de tomate silvestre que surgiu ao lado de um pé de abacate, levando-me a lembrar do Gilberto Gil, em Refazenda – “enquanto o tempo não trouxer teu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão”. E que delicias eram aqueles tomates na salada sempre bem preparada pela Nirava.
A verdade é que a existência cuida; e aquilo que é, é. As coisas são do jeito que são, acontecem do jeito que acontecem, e não muitas vezes do jeito que a gente quer, e mesmo quando a gente força a barra, o resultado costuma ficar meio estranho, parece que algo não fluiu normalmente, por isso resultou meio torto, meio capenga.
Aliás, essa nossa (minha e da Nirava) experiência de virmos regularmente a Ibitipoca nos finais de semana, eu sempre cuidando do jardim e do pomar e ela cuidando de suas criações artísticas e da casa, fez crescer em mim essa satisfação em cuidar das coisas mais simples que nos rodeiam. É claro que pela altitude de Ibitipoca e pelo ambiente mais rural que urbano, o ar ali é sempre bem puro, e as noites silenciosas favorecem um sono restaurador. Mas uma das coisas mais simples e mais básicas do cuidado com a gente é o preparo do alimento que consumimos. E acompanhando a Nirava, nisso que ela faz bem e com prazer, eu me decidi a mudar mais uma rotina na minha vida.
Eu, que em Juiz de Fora moro sozinho, e estava acostumado a frequentar restaurantes regularmente, resolvi assumir a cozinha de casa e preparar minhas próprias refeições.
E eu não tenho dúvida que essa nova função de cozinheiro nada mais foi do que uma sequência natural daquele primeiro passo na função de jardineiro. O cuidado com a terra, o cuidado com o corpo, tudo faz parte do cuidado com a natureza, tudo é uma só coisa.
E, da mesma forma, que no jardim e no pomar, o aprendizado continua sempre acontecendo também na cozinha e cada vez mais rico. Não abri mão da valiosa receita do arroz integral que me foi passada pelo bom amigo Sandey lá em Fortaleza e agreguei uma série de outras receitas culinárias. Aprendi as manhas do uso do alho e da cebola, dos mexidos e remexidos, dos refogados e dos ensopados, dos bolos e das tapiocas.
Em casa, passou a ser uma curtição essa minha nova função de “dono de casa”. Um duplo prazer: o fazer e o comer. E desapareceu até uma certa má vontade que antigamente eu sentia em lavar pratos e talheres. Agora, essas tarefas fluíam como parte de todo o processo gostoso da cozinha.
Mas, como disse, o aprendizado não para e a existência cuida de nos apresentar desafios e desafios. E foi assim, que por obra de um exame de sangue feito em hora imprópria e, que por isso resultou numa interpretação errada, eu achei que estava com certo problema de saúde. Esse foi o empurrão necessário para que eu recorresse a uma série de estudos que sempre estiveram disponíveis para mim, mas que nunca cuidei de levar adiante em minha própria vida. Por um lado eram estudos a respeito dos malefícios da farinha de trigo, dos laticínios, dos embutidos, etc.; por outro lado os benefícios do óleo de coco, do açafrão, da linhaça, do cloreto de magnésio, do coco, do abacate, do limão, da maçã, e por aí vai.
Tudo isso foi uma revolução na minha culinária. Mais sabor, mais saúde e mais disposição.
E o melhor da festa é que tudo isso contagiou a Nirava e, nessas questões, como em muitas outras, é sempre bom a gente estar juntos com prazer, cumplicidade e companheirismo.
E fechando o circulo, mais um passo está surgindo à frente: a antecipação para já de nosso projeto de horta orgânica em Ibitipoca. Anteriormente, pensávamos nesse projeto só para daqui a 1 ano e meio quando a Nirava se aposenta e iremos nos mudar de vez para lá. Achávamos difícil implementá-lo agora devido à nossa ausência durante os dias da semana. E muitas hortaliças necessitam de água diariamente ou quase. Mas estamos pensando agora numa alternativa com mangueiras flexíveis e rígidas, com conexões e furos que poderão ficar ligados permanentemente, possibilitando uma irrigação mesmo durante nossa ausência.
E eu já sinto prazer só em pensar em todo esse processo de preparação dos canteiros, da mistura de terras mais férteis, de esterco, de folhas secas, as separações entre os canteiros de maneira funcional e com a devida estética e limpeza, a localização estratégica perto da cozinha, a escolha das mudas... E o mais gostoso: saborear um alface, uma rúcula, uma cenoura, uma couve... tudo fresquinho, colhido na hora.
Em toda essa história eu só posso me sentir abençoado, me sentir agradecido pelo que a existência tem me proporcionado.
Quanta beleza nisso tudo. Viver o simples, curtir as pequenas coisas, estar atento ao que está aqui presente neste exato momento, ao que acontece agora, aqui.
Mas vivendo tudo isso, e sendo humano, não consigo deixar de olhar ao redor e ver toda essa insanidade espalhada no mundo, essa proliferação de ódio e violência, esse sistema perverso que só visa lucro a qualquer preço, sem respeito ao ser humano e à natureza.
Mas assumo que esse mundo é o mundo em que vivo. Sou tão humano como qualquer flagelado das guerras de tribos africanas, como qualquer menina estuprada na Índia, como qualquer imigrante ilegal na Europa, como qualquer magnata de Wall Street ou qualquer deputado corrupto de nosso país. Fazemos parte de uma só humanidade, com toda injustiça, toda violência, todo desrespeito que nela se alastra. E também com toda bondade, todo sorriso e toda esperança que nela encontramos.
Esse é o meu mundo. Quero sim, estar sempre atento ao que acontece nesse mundo, procurar sempre desvendar as cortinas que nos impedem ver as artimanhas dos grupos poderosos na política e nas finanças que tudo exploram inclusive os meios de informações para manipular as populações. Mas quero também estar atento às contribuições científicas que nos abrem novas oportunidades saudáveis de viver neste lindo planeta, saber das coisas bonitas que estão acontecendo.
E, acima de tudo, quero estar consciente de meu próprio processo pessoal o qual acontece nesse meu microcosmos, de minha alegria nas pequenas coisas. Quero buscar a lucidez para ver e entender as coisas, para alcançar a paciência, para exercitar com humildade e tolerância a aceitação das pessoas como elas são e dos acontecimentos como eles se apresentam. Ter a sabedoria para interferir nos processos somente na hora que for necessário e, se possível, da maneira mais adequada. Quero enfim estar em paz comigo mesmo.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

TAMBÉM ME CHAMO RONALDO E TAMBÉM SINTO VERGONHA

Eu entendo e respeito o direito das pessoas terem preferências políticas diferentes das minhas. Eu também tenho as minhas. Isso faz parte do jogo político dentro de uma democracia. É direito da maioria escolher o governante e promover a alternância de partido no poder quando sentir que seus anseios não estão sendo atendidos.
A democracia é uma conquista recente do Brasil e o Brasil somos todos nós. Somos nós que fomos às ruas lutar pelas “Diretas Já”, foi o povo que lutou contra uma ditadura que por vinte anos pisou nos nossos direitos de termos nossas preferências políticas e, entre outras coisas, tirou do povo o direito de alternância de poder.
Eu entendo e respeito essa moçada que hoje faz passeatas contra “tudo o que está aí”. Quem tem 30 anos hoje, não conheceu os “anos de chumbo”, não conheceu inflação de 82% ao mês (sim, ao mês, não é ao ano), não sabe o que é dificuldade para se ter um trabalho remunerado com carteira assinada.
E digo mais, quem tem 30 anos hoje, ainda era criança quando o nosso país estava endividado junto ao FMI e recebia frequentemente as humilhantes visitas de seus enviados que vinham nos ditar normas e cobrar providências. Quem tem 30 anos hoje não sabe que tivemos um tempo em que não havia esse poder e essa independência dos Procuradores e da Polícia Federal que vivem farejando toda e qualquer suspeita de corrupção e outros delitos. Há 30 anos nós tínhamos o que se chamava “Engavetador Geral da República”, porque nenhuma denúncia de corrupção neste país era investigada nem era divulgada pela mídia.
Quem tem mais de 30 anos, quem tem 40, 50 ou mais anos, sabe perfeitamente que neste nosso país sempre existiu corrupção e que a impunidade das autoridades era tida como “normal”. Infelizmente, nós ainda convivemos com esse tipo de político que manipula os votos de seus eleitores e se acha com direitos além das leis para se locupletar às custas de seu cargo, sem se dar conta que sua obrigação é servir ao povo e a ele prestar contas.
Mas se olharmos para nossa história temos que reconhecer que muitas conquistas foram alcançadas nos últimos anos, tanto do ponto de vista político, quanto social e econômico.
Entendo e respeito essa moçada de menos de 30 anos, porque ela não teve a experiência vivencial do que era esse país há tempos atrás. Ela conta apenas com as informações do Google, ela conta apenas com o “ouvi dizer” no Facebook. O Google e o Facebook colocam Brasil, Haiti e Japão num mesmo saco. E a nossa mídia completa comparando a rapidez com que o Japão foi reconstruído após o tsuname e como o Haiti ficou paralisado após o terremoto, ou como o Brasil demorou a fazer algo após as enchentes.
Existem muitos aspectos a serem considerados por trás dessas diferenças. Existe uma história diferente e existem diferenças culturais, estruturais que infelizmente são, muitas vezes, obstáculos à solução de problemas vividos pelo povo os quais requerem tratamento urgente e emergente. E junto com isso existe um grande agravante: os maus políticos que se espalham em todas as esferas: federal, estadual e municipal e que insistem na demagogia, no desvio de verbas, na manipulação dos votos.
Mas, quando essa moçada vai às ruas “contra tudo o que está aí”, ela se torna alvo preferencial dos “velhos” interesses que estiveram no poder quando ela era criança ou quando nem tinha nascido. É a velha direita que agora se assume como nova direita e que tem saudades da ditadura militar ou mesmo daqueles governos dominados pelas oligarquias regionais. Aqueles “bons tempos” em que viajar de avião era privilégio de uma elite, quando não se via nos aeroportos esses “Zé-povinhos” de bermutas e sandálias de dedo, aqueles “bons tempos” em que pobre e preto se “colocavam em seus devidos lugares”, e viviam sem reclamar de seus sub-empregos, de andar a pé, de não saber ler e escrever, e se contentavam com o futebol no fim de semana, com o carnaval, e com a proteção de um bom santo.
Essa raposa que agora se chama nova direita, essa eu não entendo nem respeito.
A democracia que estamos construindo é resultado da luta de nossos pais, nossos avós. As nossas instituições ainda estão cheias de falhas, nossa educação, nossa saúde e nossa segurança ainda deixam a desejar. E muito. Mas já contabilizam hoje um ganho significativo se compararmos com 30, 50, 100 anos atrás.
Eu sinto orgulho de estar vivendo este momento de crescimento e amadurecimento do nosso país nos mais diversos aspectos. Eu sou parte disso.
Eu não entendo e não respeito esse pessoal que quebra agências bancárias e de automóveis e não tem uma pauta de reivindicações, não tem uma liderança para discutir e exigir esse ou aquele projeto para solucionar os problemas denunciados. Eu não entendo e não respeito esse pessoal que incendeia ônibus e quebra orelhões e postes distorcendo o sentido dos movimentos de rua que queriam apenas dizer que estava “contra tudo o que está aí”.
E agora que estamos às vésperas da Copa do Mundo, vem um certo alguém dizer que está com vergonha porque as obras bilionárias não ficaram prontas.
Está com vergonha de que e de quem?
Parece com aquela classe média que sempre quis se passar por classe alta, sempre quis se passar por alguém refinado, de bom gosto e bons costumes. E fica apavorada quando não tem os talheres adequados para exibir nem tem a toalha de mesa chique para mostrar ao receber a visita de alguém de fato mais rico e refinado. Sem se dar conta, às vezes, que aquele visitante curte mesmo é a amizade, a simplicidade, a harmonia e o calor humano que se pode respirar num lar.
Assim é o nosso país, assim é a nossa cultura.
Nós não somos Alemanha nem Japão. O que caracteriza o Brasil não é a eficiência de se construir com rapidez as obras que este país precisa há décadas e décadas. Alemanha e Japão têm histórias diferentes, têm culturas diferentes. E pagam um preço alto para serem o que são. Não é fácil ser um alemão ou um japonês, ser rígido consigo mesmo, viver numa sociedade onde se repreende uma risada mais alta, um choro na rua, uma conversa num tom mais elevado. É por isso que um número imenso não só de alemães e japoneses, mas também ingleses, suecos, suíços, etc adoram o Brasil e os brasileiros. Eles gostam do Brasil do futebol, do samba, do sorriso, da alegria, do carnaval, da festa de São João, do forró, do frevo. Para eles o Brasil significa descontração, relaxamento, curtição.
Enquanto um ex-jogador de futebol brasileiro diz que sente vergonha das obras da Copa não estarem prontas, um outro jogador espanhol diz que não entende porque há manifestações de protestos no Brasil nas vésperas da Copa. Segundo ele, as pessoas deveriam estar felizes porque o Brasil é o país do futebol e a Copa está sendo realizada aqui. Então é hora de irmos para as ruas cantar e dançar. É hora do samba e do sorriso. E ele que vive na Espanha sabe que lá a taxa de desemprego é altíssima, ao contrário do Brasil.
Eu vivo no Brasil e sei que meu pedreiro não cumpre o prazo prometido, sei que a telefônica só vai resolver o meu problema quando eu for no PROCON, sei que a minha seguradora vai criar uma série de burocracias desnecessárias para atender meu pleito. Então, se os aeroportos ficarem prontos em 2016, eu acho que já estamos no lucro, se a transposição do Rio São Francisco só funcionar completamente em 2017, vai ser ótimo para o nordeste que luta com a seca há séculos, e se algum gringo reclamar comigo, eu lhe direi que nós não somos primeiro mundo, nós somos emergentes, e com orgulho.
Eu concordo com aquele jogador espanhol. E digo mais, eu que também me chamo Ronaldo, vou sentir vergonha se esses milhares de estrangeiros que vierem ao Brasil forem recebidos com quebra-quebra, com ônibus incendiados, com greves nos transportes.
Esse pessoal do primeiro mundo não precisa vir ao Brasil para conhecer aeroporto faraônico, shoppings moderníssimos, sistema perfeito de transporte urbano. Tudo isso eles têm lá em quantidade e qualidade. O que eles não têm lá é a docilidade, a amabilidade, o sorriso fácil do nosso povo. O que encanta um europeu é o drible do Garrincha, o gol do Pelé, as nossas escolas de samba, a capoeira, o molejo do brasileiro, as nossas brincadeiras, as rodas de samba, o nosso jeito moleque.
Essa é a nossa grande oportunidade de mostrar ao mundo que existe uma maneira diferente de se viver, que a felicidade não é resultado da ganância pelo dinheiro, pelo prestígio, pela carreira profissional ascendente; que a criatividade não pode ser esmagada pela exigência de precisão, de rapidez e rigidez de padrões. Não é à-toa que o grande filósofo italiano Domenico de Masi afirma que com seu patrimônio histórico e cultural, o Brasil pode dar contribuições insubstituíveis à formação de um novo modelo global, embora admita que ainda tenhamos problemas como a distância entre ricos e pobres, o analfabetismo e a corrupção. Mas ele destaca fatores positivos como o sincretismo, a postura positiva em relação à vida e a aversão à guerra.

Então, eu realmente vou sentir vergonha se os brasileiros quiserem mostrar aos nossos inúmeros visitantes um Brasil que não tem a cara do Brasil. Vou sentir vergonha se quiserem mostrar violência em vez de um sorriso maroto, se quiserem só mostrar uma eficiência de primeiro mundo e não manifestar o nosso “jeitinho brasileiro” de ser.