domingo, 26 de fevereiro de 2017

Estar no mundo sem ser do mundo

Há poucos dias recebi uma mensagem carinhosa de uma amiga querida , que talvez esteja lendo este post. Entre outras coisas, ela me dizia: “quando conheci você, eu o achava carrancudo (rs). Com o passar dos anos vamos vendo tantas coisas (rs). Gosto muito de você.”
Eu lhe respondi: “Você não estava errada. Eu era meio carrancudo mesmo. Precisei de mais uns anos depois do Osho Khalid para caírem umas fichas e me relaxar.”
Há cerca de 30 anos eu recebi uma mensagem do Osho, e a uma pergunta que eu lhe dirigi, ele me respondeu: “Não seja um missionário. Seja a mensagem.”
E durante muitos e muitos anos, sem ao menos perceber, eu segui sendo uma espécie de missionário. Não havia captado a mensagem.
Eu sempre fui um “fazedor” e aprendi com meu mestre que não tinha que brigar com isso, pois esse era o meu “jeitão”, fazia parte do tipo de personalidade que escolhi ser entre as várias opções que me foram dadas ao longo do meu crescimento. A questão não era o “fazer”, mas sim o “como fazer”. Confesso que me esforcei muito em tentar fazer as coisas meditativamente. Anos a fio fazendo Dinâmica, Kundalini, Nadabrahma e tudo o mais. Sem perceber que esse “como fazer” não viria através do esforço.
Grupos e mais grupos de terapia me ajudaram demasiadamente a ser quem hoje sou. Mas foi um processo difícil tal como tirar água na pedra. Foi bem assim. E depois de algum tempo uma filete de água começou a brotar na pedreira.
Abracei de corpo e alma a comunidade dos companheiros de viagem. Muitas belas amizades floresceram e que guardo com carinho no coração até hoje. Mas eu sempre queria “organizar as coisas”.
Eu trazia comigo o espírito de organização que absorvi como bancário do Banco do Brasil e um espírito de luta que aprendi na minha militância politico-estudantil.
Desde a minha primeira ida a Puna em 1987 eu já quis “entender” como funcionava a comuna, como poderia ser um distribuidor dos livros e CDs, como era a “organização”, quem era quem. E voltei organizando e coordenando diversos centros de meditação, integrando o grupo que editava o jornal Osho Times, tornando-me agente da Osho Internacional junto às editoras nacionais que publicavam Osho, criando por sugestão de Puna o Instituto Osho Brasil.
E assim eu fui “fazendo, fazendo e fazendo”. Sempre com a “língua pra fora”, e carrancudo, como diria minha amiga querida.
Certa vez cheguei em Puna exausto. Estava bem esgotado após desenvolver e implantar um amplo projeto de seminários no Banco do Brasil para melhoria do atendimento que atingiu mais de 50 mil funcionários, no qual incluí vários textos seletos do Osho.
Precisava de uma boa massagem e, ao entrar na sala, a terapeuta simplesmente pediu que eu sentasse e contasse o que estava acontecendo comigo. Após, orgulhosamente relatar todo o meu feito, ela me disse: “Osho não está lhe dizendo para fazer isso ou aquilo. Ele está lhe dizendo apenas para ser feliz. Só isso: seja feliz”. Putz! Que ducha de água fria. Eu nem precisei, nem ela me deu a tal massagem. Eu desmontei ali mesmo.
E assim, fui aprendendo passo a passo que a questão não é a meta, mas o caminhar.

Mas a vida é mestra e as curvas e obstáculos do caminho muitas vezes nos ajudam a abrir os olhos e ver coisas até então ocultas, ainda que estejam ali, diante de nossos olhos.
Foi com muita relutância que retornei à minha cidade natal há cerca de 10 anos.
Todos os fantasmas e sombras do passado estavam a postos atrás de cada esquina, atrás de cada pilastra. Eu tive que olhar um a um nos olhos e, para minha surpresa, todos foram se dissolvendo, um a um. Uns mais rápidos e outros mais demorados, mas todos se dissolveram.
E aqui, distante fisicamente da minha tribo de origem, da maioria dos meus velhos e queridos companheiros de viagem eu pude me dar conta de algo que já tinha lido (e traduzido) do Osho anos atrás:
“Essa foi a coisa mais infeliz no passado: discípulos organizaram-se, relacionando-se, e todos eles eram ignorantes. E pessoas ignorantes só conseguem criar mais chateação no mundo do qualquer outra coisa. Todas as religiões têm feito exatamente isso.
Nós já temos sofrido demais devido ao relacionamento direto de discípulos entre si,  criando religiões, seitas, cultos, e depois brigando. Eles não conseguem fazer nada mais.
Pelo menos comigo, lembre-se disso, apenas uma 'amistosidade' líquida, não uma amizade sólida, é suficiente e muito mais bela, sem qualquer possibilidade de causar danos à humanidade no futuro."

Comecei então uma nova etapa em meu processo pessoal de crescimento: Aprender a ser só, ou como diria o Gilberto Gil, aprender a só ser.
Foi o empurrão que eu precisava para parar, relaxar e deixar as fichas caírem, uma a uma.
Eu, sozinho, perambulando pelas ruas, um desconhecido na multidão, sem um centro de meditação para coordenar, sem uma comunidade de amigos para com eles morar, sem uma auto imagem a preservar e exibir... Pouco a pouco fui (meu ego foi) me reduzindo a uma pessoa comum, a um mero transeunte no meio de outros milhares, parando numa padaria para tomar um cafezinho e saborear um pão de queijo como qualquer habitante desta cidade. Nada especial. Eu já não era aquele sannyasin que se “achava” um guardião da mensagem do Osho, aquele que tinha que traduzir mensalmente um novo texto do Osho para publicar no site do Instituto, já não tinha que editar mensalmente o boletim/revista on-line fazendo a conexão nacional dos sannyasins. E pouco a pouco fui deixando uma série de papéis que havia assumido, fui cada vez mais me desnudando. Meu foco foi deixando de ser as grandes coisas, os grandes projetos e comecei a me conectar com as pequenas coisas reais, com os pequenos detalhes da vida, com minhas sensações internas, meus sentimentos mais puros, sem o filtro da mente. Olhar com o coração, ver as pessoas, as árvores, os cães que passam nas ruas.
Me vieram então tantas citações do Osho, muitas delas eu havia lido e repetido feito um papagaio. Numa dela ele dizia:
“A palavra ‘inspiração’ é perigosa.
Primeiro é inspiração, depois se torna seguimento, depois se torna imitação – e você acaba sendo uma cópia carbono. Não há necessidade alguma de ser inspirado por alguém. E não é apenas não ser necessário, é perigoso também. Apenas observando, eu tenho visto... cada indivíduo é único. Ele não pode seguir um outro alguém.
Ele pode tentar – milhões tem tentado por milhares de anos. Milhões são cristãos, milhões são hindus, milhões são budistas. O que eles estão fazendo? A inspiração de Goutama Buda fez milhões de pessoas budistas e agora eles estão tentando seguir seus passos. E eles não estão chegando a lugar algum; eles não conseguem.
Você não é um Goutama Buda e o rastro dele não se ajusta a você, nem os sapatos dele servem em você, você terá que encontrar o tamanho exato de sapato que lhe sirva.
A inspiração tem sido um infortúnio, não uma benção.
Assim, por favor, não se inspire em mim, caso contrário você será apenas uma cópia carbono, você não terá a sua autêntica e original face. Você será um hipócrita: você dirá uma coisa e fará outra. Você mostrará a sua face em situações diferentes com máscaras diferentes, e aos poucos você se esquecerá qual é a sua face verdadeira; são tantas as máscaras...”

Foi aí que comecei meu processo de independência do Osho. Como ele sempre disse que não era muleta nem guarda-chuva de ninguém, eu comecei meu processo de jogar fora a muleta e o guarda-chuva que eu vinha carregando. E simultaneamente fui aprofundando meu processo pessoal de presença, de estar presente aqui e agora, de me desligar do processo mental e deixar fluir, pouco a pouco, as minhas próprias percepções, as minhas puras sensações, deixando que os sentimentos brotassem, os insights acontecessem. Me ajudou muito nesse processo as minhas idas a Ibitipoca-MG, na serra da Mantiqueira, onde minha companheira Nirava tem uma aconchegante casa e um belo terreno de apenas 1.200m2, mas o suficiente para eu aprofundar uma linda relação com a terra. A criação de um jardim, com toda a sensibilidade estética que ele envolve, com toda a delicadeza necessária no trato com as plantas e flores, com o estudo e a compreensão de como funciona o solo, a recuperação do solo, a escolha das plantas mais adaptáveis aqui e ali. E depois, a formação do pomar, o respeito às árvores nativas pré-existentes, as plantinhas nativas cheias de flores delicadas. E num terceiro momento, a horta orgânica, com a imensa satisfação de colher a couve, o alface, o milho, o tomate, a abobrinha e tudo mais.
E no meio de tudo isso, o silêncio das montanhas, quebrado pelo maravilhoso canto dos pássaros, os mais variados. De repente, surge numa árvore um João-Bobo e a gente fica hipnotizado. De outra feita foi uma saíra-sete-cores que nos deixou de boca aberta. Aí surge uma seriema que resolveu nos visitar sem avisar.
E nesse ambiente, o relaxamento acontece, os insights brotam do nada, e a meditação acontece sem qualquer técnica especial.
Mas corro um sério risco de me tornar um escapista. Lembro-me mais uma vez do Osho nos alertando que é fácil ser um meditador nas montanhas; o difícil é ser um meditador na praça do mercado.
Me veio então outro texto primoroso dele:
“(...) Eu sempre quis que o meu povo ficasse no mundo, vindo a mim ocasionalmente, ficando comigo, refrigerando-se, depois voltando para o mundo, porque o mundo tem que ser mudado. Nós não somos aqueles que renunciam ao mundo.
Todas a religiões andaram ensinando: ‘Renunciem ao mundo.’
 

Eu lhes ensino transformem o mundo. (...)
Mas o mundo está onde está o trabalho. Isto aqui é uma escola de mistério. Nós não somos os renunciadores, nós somos os revolucionários. 
Queremos mudar o mundo todo
 

E, ao mudar o mundo, vocês mudarão a si mesmos. Vocês não podem mudar nada mais, a menos que passem através da mudança simultaneamente.

Então me vem essa conexão com o mundo. E eu abro os olhos para ver o mundo dos homens. Para ver essa realidade mais próxima que me cerca, esse nosso Brasil dos brasileiros. E, convenhamos, o cenário não está nada agradável. Todos os dias somos acordados com notícias de novas denúncias de corrupção, de violência, de muita coisa feia que dói os olhos e os ouvidos.
Então, surge o grande desafio: como estar no mundo? É claro que tem a grande máxima: “estar no mundo, sem ser do mundo”. Mas a máxima começa exatamente com o “estar no mundo”. E é claro que cada um tem suas ferramentas, seus instrumentos para ver e se situar nesse mundo.
Minha formação foi em História. Fiz o curso de História, lecionei no ensino médio durante 20 anos, paralelamente ao meu trabalho como bancário. Aliás, ensinar História era o meu grande barato e eu gostava de estudar História, entender o desenrolar do processo histórico, as relações com as mudanças econômicas, a evolução das estruturas de poder, os movimentos populares clamando por igualdade e justiça ao longo dos séculos. Tudo isso deu uma bagagem enorme para minha maneira de ver tudo o que se passa na vida nacional hoje.
Além disso, ainda na minha adolescência, eu participei de um movimento cristão, que abriu muito minha consciência a respeito das injustiças sociais, abriu muito meu coração, para me sentir compassivo e solidário para com todos os meus semelhantes que sofrem as consequências dessas injustiças.
Então, da mesma forma que eu estou conectado à natureza, à terra, às plantas, aos pássaros, aos animais em geral, eu também estou conectado ao mundo dos homens. Da mesma forma que eu quero ver um vídeo do Ernst Gotsch com sua visão profunda e harmônica da Agrofloresta, da mesma forma eu me emociono ao ouvir um Emilio Santiago interpretando Eu Sei que Vou te Amar; da mesma forma que eu divulgo um vídeo que denuncia maus tratos a animais, eu divulgo a condenação da fala hipócrita de um senador que está sendo denunciado por receber propina de milhões de reais.
Entendo que o meu estar no mundo, pressupõe assumir posturas, tomar atitudes com base na compreensão que tenho de tudo o que está me cercando.
Defendo uma série de bandeiras que o espaço aqui é pequeno para enumerar todas. Basicamente defendo direito à liberdade, a uma vida saudável e segura para todos, moradia, educação de qualidade, oportunidades iguais a todos, sem distinção de classe social, de raça, ou do que quer que seja. Sou a favor das bandeiras de defesa ambiental, de defesa das minorias, de defesa dos animais.
Não tenho partido político, mas sou capaz de analisar as bandeiras defendidas pelos diversos partidos e políticos.
Acompanho noticiário político desde meus 15 anos de idade. Hoje estou às portas dos 70 e sei perfeitamente que a corrupção é um dos maiores, senão o maior, dos problemas brasileiros. E não é de hoje.
Mas também sei da existência de todo o poder econômico oculto atrás dos noticiários dos jornais e telejornais, oculto atrás do financiamento dos políticos e seus partidos, tudo em troca da defesa de seus interesses. E esses interesses não têm qualquer compromisso com o bem estar das populações, com aquelas bandeiras que eu citei atrás. Pelo contrário, os interesses dos grandes grupos econômicos seguem noutra direção.
Assim, num momento como este vivido atualmente pelo nosso país, pelo nosso povo, eu sinto que o meu “estar no mundo” significa literalmente estar no mundo. Este não é o momento para “fugir” dos problemas do mundo.
E quanto ao meu “sem ser do mundo”, é o meu desafio pessoal. E enquanto tal, cabe a mim, exclusivamente a mim. É o que Osho diz: “E, ao mudar o mundo, vocês mudarão a si mesmos. Vocês não podem mudar nada mais, a menos que passem através da mudança simultaneamente.
A minha denúncia de uma manobra política para defender interesses ocultos, não pode ser fruto de um ativismo cego e inconsciente. A minha denúncia é a manifestação de minha solidariedade humana, de meu comprometimento compassivo com um povo maltratado e que, inconscientemente é manipulado pelo interesse dos poderosos.
Da mesma forma que sou contra o uso dos agrotóxicos nas plantações, sou contra o uso do poder econômico para manipular a população, como sou contra muitas coisas mais. E nessa população manipulada incluo não só os menos favorecidos social e economicamente, mas aqueles que com um mínimo de instrução e condição material, não têm o discernimento necessário e suficiente para saber que estão sendo massas de manobra.
A cada passo, a cada denúncia, a cada compartilhamento de petições, cabe a mim dar um passo atrás e ouvir meu próprio coração, minha fonte interna de sabedoria, ouvir meu mestre interior. A meditação é o meu canal.
Esse é o meu desafio.

E é muito oportuno lembrar Bertrand Russel, numa entrevista que compartilhei há poucos dias nas redes sociais, “Nesse mundo que está ficando cada vez mais conectado, nós temos que aprender a tolerar uns aos outros, temos que aprender a aceitar o fato de que algumas pessoas dizem coisas que não gostamos. Só assim nós poderemos viver juntos, só dessa forma.”

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