terça-feira, 27 de outubro de 2015

Em paz comigo mesmo

Parece que algo novo teve início exatamente ali, quando eu estava começando a conceber o jardim lá em Ibitipoca.
Na verdade, nada estava se iniciando, pois na época eu já trazia comigo 66 anos de muitas experiências, muitas tentativas e erros e muitas informações, algumas processadas e testadas vivencialmente e incorporadas à minha compreensão do mundo, e outras tantas descartadas por se revelarem sem ressonância dentro de mim.
Mas algo novo teve início ali com o jardim de Ibitipoca.
Primeiro foi a minha entrega àquele verdadeiro ato de criação, procurando vislumbrar um jardim em cima daquele terreno irregular, muito arenoso e cheio de pedras, uma fina cobertura sobre um solo rochoso, com muitos entulhos que sobraram da construção da casa, além de valetas e muito mato.
E a partir desse primeiro passo, foram se sucedendo experiências cada vez mais fantásticas, desde a concepção do desenho à preparação do terreno para receber o jardim, o tratamento do solo, a escolha das mudas, o teste de plantio aqui e ali, a busca constante de uma harmonia visual e energética. Enfim, ao longo de vários meses, o jardim começou a tomar forma.
E paralelamente a todo esse processo começou a crescer dentro de mim uma ligação muito especial com a própria terra. Não seria exagero dizer que dentro de mim cresceu um amor por aquele terreno. Eu comecei a experimentar um prazer imenso ao tocar a terra, ao preparar uma cova para um novo plantio, ao misturar o esterco, ao arrancar ervas daninhas e pedregulhos. Eu enfiava a mão na terra com gosto, com muito gosto. E, de preferência eu colocava roupas velhas e surradas para ficar mais à vontade e poder sentar, me debruçar e até deitar sobre a terra nessa tarefa de formar o jardim.
E como se não bastasse, toda aquela área de Ibitipoca é repleta de pássaros, de cantos e cores variadas. E todo esse meu trabalho de jardinagem sempre foi acompanhado por essa plateia fiel: tico-ticos, canários, coleiros, saíras, maria preta, pintassilgo, beija-flor, e muitos, muitos outros.
Momentos mágicos eram aqueles em que eu, debruçado na terra, dissolvido naquela comunhão com o que sentia ser a própria “mãe-terra”, de repente era despertado por um canto especial. E eu me virava e contemplava aquele novo visitante que parecia estar me chamando e dizendo: eu estou aqui. Momentos em que eu me perguntava: o que mais é preciso para ser feliz?
E da experiência do jardim passei ao pomar no terreno ao lado. Um terreno ainda mais virgem no qual tive o cuidado de respeitar as árvores e arbustos mais originais, assim como o próprio mato e as plantinhas silvestres com suas mais variadas flores que se abrem em épocas distintas do ano. E teve início um outro processo, paralelo ao do jardim. Semelhante e ao mesmo tempo diferente. Enquanto no jardim, em apenas um mês eu já podia perceber se determinada planta se adaptava ou não àquele local, àquele solo, ao Sol ou à sombra, se ela iria florescer ou não, ali no terreno do pomar as coisas aconteciam diferentemente. Só para citar um exemplo, o primeiro pé de caqui que plantei, após um início promissor, cheio de folhas novas, de repente perdeu todas elas e por quase um ano permaneceu apenas aquele galho aparentemente seco até que, já sem esperanças, eu me decidira a plantar uma outra nova muda. Mas, para minha surpresa, de repente, novas folhas surgiram, novos ramos brotaram e aquele mesmo pé de caqui começou a tomar forma de um arbusto já adolescente, cheio de folhas e vida. E essa mesma experiência aconteceu também com a parreira de uva, com a graviola, com a acerola. Com as frutas do pomar aprendi muito na arte de observar, de esperar com paciência, de perseverar, de confiar e de entregar à existência.
Surpresas se sucediam, como aquele pé de tomate silvestre que surgiu ao lado de um pé de abacate, levando-me a lembrar do Gilberto Gil, em Refazenda – “enquanto o tempo não trouxer teu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão”. E que delicias eram aqueles tomates na salada sempre bem preparada pela Nirava.
A verdade é que a existência cuida; e aquilo que é, é. As coisas são do jeito que são, acontecem do jeito que acontecem, e não muitas vezes do jeito que a gente quer, e mesmo quando a gente força a barra, o resultado costuma ficar meio estranho, parece que algo não fluiu normalmente, por isso resultou meio torto, meio capenga.
Aliás, essa nossa (minha e da Nirava) experiência de virmos regularmente a Ibitipoca nos finais de semana, eu sempre cuidando do jardim e do pomar e ela cuidando de suas criações artísticas e da casa, fez crescer em mim essa satisfação em cuidar das coisas mais simples que nos rodeiam. É claro que pela altitude de Ibitipoca e pelo ambiente mais rural que urbano, o ar ali é sempre bem puro, e as noites silenciosas favorecem um sono restaurador. Mas uma das coisas mais simples e mais básicas do cuidado com a gente é o preparo do alimento que consumimos. E acompanhando a Nirava, nisso que ela faz bem e com prazer, eu me decidi a mudar mais uma rotina na minha vida.
Eu, que em Juiz de Fora moro sozinho, e estava acostumado a frequentar restaurantes regularmente, resolvi assumir a cozinha de casa e preparar minhas próprias refeições.
E eu não tenho dúvida que essa nova função de cozinheiro nada mais foi do que uma sequência natural daquele primeiro passo na função de jardineiro. O cuidado com a terra, o cuidado com o corpo, tudo faz parte do cuidado com a natureza, tudo é uma só coisa.
E, da mesma forma, que no jardim e no pomar, o aprendizado continua sempre acontecendo também na cozinha e cada vez mais rico. Não abri mão da valiosa receita do arroz integral que me foi passada pelo bom amigo Sandey lá em Fortaleza e agreguei uma série de outras receitas culinárias. Aprendi as manhas do uso do alho e da cebola, dos mexidos e remexidos, dos refogados e dos ensopados, dos bolos e das tapiocas.
Em casa, passou a ser uma curtição essa minha nova função de “dono de casa”. Um duplo prazer: o fazer e o comer. E desapareceu até uma certa má vontade que antigamente eu sentia em lavar pratos e talheres. Agora, essas tarefas fluíam como parte de todo o processo gostoso da cozinha.
Mas, como disse, o aprendizado não para e a existência cuida de nos apresentar desafios e desafios. E foi assim, que por obra de um exame de sangue feito em hora imprópria e, que por isso resultou numa interpretação errada, eu achei que estava com certo problema de saúde. Esse foi o empurrão necessário para que eu recorresse a uma série de estudos que sempre estiveram disponíveis para mim, mas que nunca cuidei de levar adiante em minha própria vida. Por um lado eram estudos a respeito dos malefícios da farinha de trigo, dos laticínios, dos embutidos, etc.; por outro lado os benefícios do óleo de coco, do açafrão, da linhaça, do cloreto de magnésio, do coco, do abacate, do limão, da maçã, e por aí vai.
Tudo isso foi uma revolução na minha culinária. Mais sabor, mais saúde e mais disposição.
E o melhor da festa é que tudo isso contagiou a Nirava e, nessas questões, como em muitas outras, é sempre bom a gente estar juntos com prazer, cumplicidade e companheirismo.
E fechando o circulo, mais um passo está surgindo à frente: a antecipação para já de nosso projeto de horta orgânica em Ibitipoca. Anteriormente, pensávamos nesse projeto só para daqui a 1 ano e meio quando a Nirava se aposenta e iremos nos mudar de vez para lá. Achávamos difícil implementá-lo agora devido à nossa ausência durante os dias da semana. E muitas hortaliças necessitam de água diariamente ou quase. Mas estamos pensando agora numa alternativa com mangueiras flexíveis e rígidas, com conexões e furos que poderão ficar ligados permanentemente, possibilitando uma irrigação mesmo durante nossa ausência.
E eu já sinto prazer só em pensar em todo esse processo de preparação dos canteiros, da mistura de terras mais férteis, de esterco, de folhas secas, as separações entre os canteiros de maneira funcional e com a devida estética e limpeza, a localização estratégica perto da cozinha, a escolha das mudas... E o mais gostoso: saborear um alface, uma rúcula, uma cenoura, uma couve... tudo fresquinho, colhido na hora.
Em toda essa história eu só posso me sentir abençoado, me sentir agradecido pelo que a existência tem me proporcionado.
Quanta beleza nisso tudo. Viver o simples, curtir as pequenas coisas, estar atento ao que está aqui presente neste exato momento, ao que acontece agora, aqui.
Mas vivendo tudo isso, e sendo humano, não consigo deixar de olhar ao redor e ver toda essa insanidade espalhada no mundo, essa proliferação de ódio e violência, esse sistema perverso que só visa lucro a qualquer preço, sem respeito ao ser humano e à natureza.
Mas assumo que esse mundo é o mundo em que vivo. Sou tão humano como qualquer flagelado das guerras de tribos africanas, como qualquer menina estuprada na Índia, como qualquer imigrante ilegal na Europa, como qualquer magnata de Wall Street ou qualquer deputado corrupto de nosso país. Fazemos parte de uma só humanidade, com toda injustiça, toda violência, todo desrespeito que nela se alastra. E também com toda bondade, todo sorriso e toda esperança que nela encontramos.
Esse é o meu mundo. Quero sim, estar sempre atento ao que acontece nesse mundo, procurar sempre desvendar as cortinas que nos impedem ver as artimanhas dos grupos poderosos na política e nas finanças que tudo exploram inclusive os meios de informações para manipular as populações. Mas quero também estar atento às contribuições científicas que nos abrem novas oportunidades saudáveis de viver neste lindo planeta, saber das coisas bonitas que estão acontecendo.
E, acima de tudo, quero estar consciente de meu próprio processo pessoal o qual acontece nesse meu microcosmos, de minha alegria nas pequenas coisas. Quero buscar a lucidez para ver e entender as coisas, para alcançar a paciência, para exercitar com humildade e tolerância a aceitação das pessoas como elas são e dos acontecimentos como eles se apresentam. Ter a sabedoria para interferir nos processos somente na hora que for necessário e, se possível, da maneira mais adequada. Quero enfim estar em paz comigo mesmo.

16 comentários:

Unknown disse...

Parabéns pelo texto Champak, sempre muito bem escrito, muito bem expresso, posso sentir seu sentimento de alegria e de êxtase nas palavras.
Você esteve atento ao conselho do Mestre, que é o cuidado ao usar as palavras, para obter a nuance e a fragrância mais próxima do real sentimento.

Um forte abraço.
Muktesh

Blog do Champak disse...

Valeu Muktesh. Sinto muita gratidão pelo Mestre, pelos seus toques, pelos seus empurrões, pelos seus insights inspiradores, enfim pela sua presença na minha vida. Um de seus empurrões mais significativos, que tenho levado muito em conta, é para que eu caminhe com meus próprios pés, veja com meus próprios olhos, sinta com meu próprio coração, e compreenda as coisas com minha própria fonte de discernimento. E não me esquecendo nunca da beleza das pequenas coisas e de que eu sou uma pessoa comum. Grande abraço. Champak

Unknown disse...

Querido amigo, muito feliz por vocês. Acompanhei sua bela descrição como se estivesse junto, arrumando o terreno, plantando, insistindo e vibrando a cada nova conquista. Os visitantes da natureza com seus cantos inebriantes... Apesar de viver nesse mundo conturbado, sempre admirei o simples, o belo, as maravilhas que esse planeta nos oferece todos os dias, com espetáculos da natureza que nos energizam e nos fazem sentir mais próximos do Criador. Concordo que o olhar de cada um de nós é uno, por isso e por determos raciocínio e livre arbítrio, escolhemos nossos pensamentos, comportamentos, ações, enfim, escolhemos nossos caminhos. Um grande abraço e muita saudade do tempo que tivemos oportunidade de conviver.

Tetê disse...

Que lindo Champak!
Adorei saborear seu texto! Escrito com amor e vivência real. Eu, simplesmente sinto-me lisongeada de ter sido apresentada a você pela Nirava, uma amiga e irmã que tanto admiro.
Partilho com carinho de toda essa vivência que está construindo junto a ela, pois vejo claramente a riqueza de sabedoria em viver com o simples, construindo-se a todo momento, saindo se sua zona de conforto, e redescobrindo o significado de ter uma vida feliz e saudável.
Parabéns em sua nova jornada de vida!
Com carinho... Tetê

Blog do Champak disse...

Oi Norma. Você é uma dessas pessoas que a gente guarda com carinho no coração. Podemos passar anos e anos sem nos falar, mas continuamos amigos, e se nos encontramos, é como se tivesse passado apenas um dia. Muito bonito o que você escreveu. Abraço saudoso.

Blog do Champak disse...

Oi Tetê. A Nirava é realmente um presente muito especial para mim. Obrigado pelas suas palavras. abraço.

Unknown disse...

Adorei tua narracao e te saber tao inteiro e feliz neste momento NAMASTE BELOVED

CENTRO DE MEDITAÇÃO E TERAPIAS NATURAIS SHUNYATA disse...

Querido amigo fico super feliz em ver você assim em paz ,seguindo cada vez mais o caminho da cura ,da saúde e do que faz bem pra sua alma.....muito orgulhosa de você .que a vida derrame cada vez mais suas benções sobre você e Nirava.muito amor aos dois, e qualquer hora apareço aí para conhecer essa beleza toda.Nadma

Purnesh disse...

Ô beleza!! Tua descrição é tão boa que carrega a gente junto... Deu prá sentir o cheiro da terra e ouvir o canto dos pássaros e, se me permite, bagunçar tua cozinha junto contigo...rs
Eu só acrescentaria um pequeno detalhe, que costumo fazer depois de um dia de trabalho com as mãos... Ainda sujo e suado, tomar aquela boa e gelada cerveja! 😊
Saúde Champak!

Anônimo disse...

Parabéns Champak e Nirava por essa vida de amor e consciência não só consigo próprios mais com a mãe Terra. Perfeita descrição com palavras vindas do coração.

Um abração
Deva Shabdam Janete

Blog do Champak disse...

Amiga Nadma, grato pelas palavras. Você sabe que estamos sempre de braços aberto para receber você na hora que quiser e puder. Gostamos muito de você.

Blog do Champak disse...

É isso aí Purnesh. Quem sabe numa hora dessas a gente cruza pelo caminho e toma junto essa cerveja gelada. Eu também gosto. E será bem vindo para bagunçar um pouco minha cozinha. abração.

Blog do Champak disse...

Obrigado pelo carinho, Deva Shabdam. Grande abraço.

TAZA disse...

Que legal, Champak, que belo texto escrito com experiencia e amor no coração, que legal.

Clara Maria disse...

Ronaldo, convivemos um certo tempo de nossa vida no trabalho e no lazer e sempre o admirei, uma pessoa tranquila e bem humorada. O mundo e a vida se encarregam de separar os amigos e até mesmo a família, mas o equilíbrio emocional, principalmente na maturidade nos dá a paz que precisamos para sermos felizes. É nas coisas mais simples que encontramos a felicidade, já dizia Rubem Alves. Feliz em saber que está bem e aproveitando o que a vida lhe reservou. Desejo que essa paz e felicidade estejam sempre com você. Grande abraço.

Purnesh disse...

Feito!