sábado, 6 de dezembro de 2008

A vida começa aos 60



É claro que, nesta presente encarnação, a vida começa a ser contada a partir de nosso nascimento. A gente nem se lembra mais, mas deve ter sido grande o impacto que tivemos quando captamos as primeiras impressões do mundo externo, as sensações táteis, os sons, as cores... Pôxa! Deve ter sido algo realmente fantástico, embora na época não tivéssemos ainda desenvolvido certos sensores , ou pelo menos eles ainda não estavam articulados sob o comando de uma central que processasse tudo conscientemente. E, mesmo depois, enquanto os primeiros anos avançavam, quantas descobertas fomos acumulando... Os primeiros passos, as primeiras palavras, as primeiras frases, os primeiros quebra-cabeças, as primeiras descobertas...

Quando eu estava próximo de completar vinte anos de idade, também tive uma sensação muito forte de que, agora sim, a vida estava começando para mim. Eu me lancei cedo numa carreira profissional e logo senti o gostinho de ter meu próprio dinheiro, de poder ter um fusquinha azul claro, de comprar todos os discos que sonhei ter, todos os João Gilberto, todas as Nara Leão, os Tamba Trio e todas as Elis. E também aqueles Duke Ellington, os Dizzy Gillespie e as Billy Holiday. E os livros? Sartre, Marx, Herman Hesse, Vinicius, Drumond... Sob certo sentido eu me sentia dono do mundo, pelo menos do “meu” mundo que eu estava construindo. Já podia pensar em constituir uma nova família, construir um patrimônio... Eu sentia que estava tomando as rédeas de meu destino e escrevendo a minha história. Quanta ousadia, quantos riscos, quantos medos...

Passados, porém, mais vinte anos, eu enfrentava novamente um período de grandes mudanças. Agora, eu olhava para trás e tinha uma visão de toda a vida que eu havia construído; podia ver e sentir o preço que tinha pago, tostão por tostão, por toda aquela estrutura montada. E começava a desconfiar - chegava mesmo a perceber - que a vida poderia ter tido um significado mais profundo, uma intensidade maior, um colorido mais vivo. Eu estava com quarenta anos e consegui chegar a uma compreensão de que eu tinha o direito e o poder de proclamar a minha liberdade. Vivi então o tempo da demolição, o tempo de desmontar, se não tudo, pelo menos muita coisa. Tempo de descobrir a quantidade de fardo que carregava desnecessariamente e jogar fora sem pensar duas vezes. Tempo de novas viagens para fora e para dentro. Tempo de experimentar os primeiros passos no desconhecido mundo do autoconhecimento. Quantas descobertas, quantos saltos, quantos novos experimentos em todos os níveis... Era o tempo de reaprender a andar, reaprender a sentir, a brincar, a dançar e a cantar. Começava a construir uma nova vida, com um entendimento mais abrangente e mais profundo, acreditando em novos sonhos e ideais de uma possível vida de paz e harmonia com o cosmos.

Mas eis que agora eu paro e me deparo diante de um espelho e descubro que os anos continuaram passando e eu cheguei aos sessenta. E quando eu digo que paro e me deparo diante do espelho, eu quero dizer muitas outras coisas além da simples constatação quantitativa do tempo passado. Há também a constatação qualitativa, há a intensidade, a diversidade e a profundidade. E mais que tudo isso, há uma compreensão que sinto chegar naturalmente, sem qualquer esforço de minha parte. E quando paro, eu me deparo diante de todos os sonhos, de todos os ideais e de todos os projetos, os realizados e os abortados, desde a infância, durante a mocidade e naqueles tempos ditos mais maduros. Por vezes, eu paro e apenas paro. Outras vezes eu paro internamente e continuo andando, mas o andar já se torna um passear, uma contemplação ambulante das ruas, das pessoas, dos carros, dos jardins, dos pássaros, das cores e dos sons. No movimento dos outros eu vejo todos os movimentos que eu mesmo fiz, na luta contra obstáculos, na proclamação dos ideais, na busca da realização dos sonhos. Quando me deparo diante do espelho que é o meu próximo mais próximo, eu vejo tudo em mim, numa dimensão passada. E paro. E por vezes, apenas paro. Descubro pela primeira vez vivencialmente a diferença entre nadar e flutuar com a vida. Intelectualmente eu já sabia disso e de tudo o mais. Mas agora, quando paro, eu consigo perceber que só tenho disposição para flutuar, que já não tenho vontade de nadar, que o nadar já não faz mais sentido. E quando eu permaneço no flutuar, vejo que nada faço, que permaneço parado e as coisas acontecem naturalmente. Talvez “parado” não seja a palavra certa. E não é. É mais um “relaxado”, sem expectativas, ou poucas. Um deixar as coisas acontecerem por si mesmas e observar.
Não parei de nadar ainda. Nado, e muitas vezes só pela curtição do nadar, sem mesmo olhar para onde. Mas, sobretudo, os sessenta anos têm me trazido muito mais facilidade para ver e entender que nadando eu não chego a lugar algum. E também que, se eu me permito flutuar, a vida me leva para onde eu devo ir, para onde faz sentido eu estar.
O fazer não se esgotou, mas agora já começa a querer assumir feições de uma brincadeira, de um relaxamento, de uma curtição, como se ele estivesse procurando descobrir o prazer de cada movimento e com um cuidado de escolher o passo que está mais em harmonia com o todo – interno e externo. Sim, parece mesmo que a vida está começando agora, aos sessenta. Pelo menos para mim.

4 comentários:

angela disse...

Olá Champa,

Como autêntica sobrevivente, meu hábito é 'nadar'. Espero chegar aos sessenta 'flutuando' mais.
Desejo-lhe mais vinte anos e muitos mais de fluidez, mesmo em águas turbulentas.
Como diz nosso amado Mestre: 'trust life, love life, rejoice life and Existence will take care of you'.
Um abraço!

Unknown disse...

Champak,

Que lindo!

FTGA disse...

Fantástico ter o privilégio de estar vivo e nos descobirmos pelos caminhos da vida. A perfeição realmente permeia toda nossa realidade.
Agradeço de coração o privilégio de ler seu Blog.
Abraço forte,

Ashara G. Souza disse...

Estou com pouco mais de cinquenta. Bom saber que ainda tenho uma última chance... rsrsrsr

Adorei o texto!!!