terça-feira, 14 de junho de 2011

Demência, senilidade ou experiência mística?


“Todo o sucesso do mundo nada significa comparado ao fracasso que no final você irá encarar, porque no final das contas somente o seu ser interior permanecerá com você. Tudo será perdido: sua glória, seu poder, seu nome, sua fama – tudo começará a desaparecer como sombras.
No fim só permanecerá aquilo que você trouxe no seu começo. Você somente poderá levar deste mundo aquilo que você trouxe.
Na Índia existe uma sabedoria popular de que o mundo é como uma sala de espera em uma estação de trem; não é a sua casa. Você não vai permanecer na sala de espera para sempre. Nada na sala de espera pertence a você – os móveis, as pinturas na parede... Você utiliza-os – você vê as pinturas, senta nas cadeiras, descansa na cama – mas nada pertence a você. Você está ali por uns poucos minutos, ou por umas poucas horas no máximo, e em seguida você se vai.
Sim, o que você trouxe consigo, na sala de espera, você levará consigo; aquilo é seu.
O que você trouxe ao mundo? E o mundo com certeza é uma sala de espera. A espera pode não demorar segundos, minutos, horas ou dias, ela pode demorar anos; mas o que importa se você vai esperar sete horas ou setenta anos?
Em setenta anos, você pode esquecer que está apenas em uma sala de espera. Você pode pensar que talvez seja o proprietário, talvez esta seja a casa que você construiu. Você pode começar a colocar uma placa com seu nome na sala de espera.
Existem pessoas – eu tenho visto isso porque eu estava viajando muito: pessoas que escrevem seus nomes nos banheiros das salas de espera. Pessoas tem gravado seus nomes nos móveis das salas de espera. Isso parece estúpido, mas é muito semelhante ao que as pessoas fazem no mundo.” (OSHO - From Darkness to Light – Cap. 2)


Semana passada, vivi a experiência de acompanhar bem de perto o desligamento de minha mãe de sua vida terrena. Sozinho com ela num quarto de hospital e estando ela sem proferir uma única palavra, passando quase todo o tempo com os olhos fechados, com uma expressão tranqüila, dediquei-me à meditação, à leitura de Osho e busquei aguçar minhas percepções e reflexões. E algumas questões afloraram.

Minha mãe foi daquelas mulheres totalmente dedicada ao lar, aos filhos, ao marido. Muito ligada à sua família de origem, de forte tradição católica, era muito trabalhadora, ativa, responsável, cuidadosa, perfeccionista e exigente. Ela cuidava de tudo em casa, sozinha. Nunca teve uma empregada ou faxineira. E durante vários anos costurava para ajudar nas despesas da casa. Era também muito possessiva, controladora, ciumenta, econômica, apegada a tudo que lhe pertencia, reservada, crítica e com dificuldades de relacionamento com estranhos. Ela era uma presença forte dentro da vida familiar e, em poucas palavras, era ela quem dava o tom e a última palavra em casa.

Ao se aproximar dos setenta anos, ela simplesmente perdeu a vontade de fazer as coisas: parou de cozinhar, de limpar a casa, de costurar. Lembro-me dela dizendo, “não consigo mais fazer nada, não tenho vontade alguma.”

Meu pai deixou o corpo quando ela alcançava setenta e cinco anos. Ela simplesmente foi se instalando na casa de suas irmãs que moravam perto. Parecia que ela estava dizendo: “a vida levou quem cuidava de mim, agora cabe a ela (a vida) se virar para arrumar um jeito para que eu continue sendo cuidada”.

Nessa nova fase de sua vida, quanto mais lhe cobravam maior interação na vida da casa, no que se refere à afetividade e ao trabalho, mais ela se fechava em seu mundo e se desligava. Sua reação passou a ser “cantarolar” sons sem sentido, como se fosse um estágio da meditação Devavani. Nessa técnica, emitimos sons desconhecidos como se fôssemos criança antes de aprender a falar.

Diante desse quadro, a solução que a vida apresentou para nós e para ela foi uma Fundação Espírita que abriga idosos. Um verdadeiro presente para ela e para nós. Além de todo o carinho com que foi cercada, ela se entusiasmou com o fato de não precisar cozinhar, nem limpar a casa, nem lavar suas roupas. A Fundação cuidava de tudo. Lá ela tinha uma casinha com dois quartos que dividia com outra companheira idosa.

Minha mãe ainda estava bem lúcida, mas eu percebia que ela passava por um crescente processo de desligamento das preocupações com o mundo. Para ela, tudo estava bom. Ela passava o dia sentada numa poltrona, observando os passarinhos que entravam e saiam da sala, observando as flores que desabrochavam no jardim, e, no máximo, reclamava de uma dor nas pernas. Via novela das seis, mas achava que tinha personagens em excesso o que lhe dificultava acompanhar a história. E dormia cedo.

Eu percebia o quanto ela tinha se transformado. Não existia mais aquela mulher ativa, controladora, que estava sempre atenta a tudo, dando conta de todas as tarefas de casa, exigindo muito de todos e de si mesma. Agora ela se tornara uma pessoa passiva, totalmente relaxada, imperturbável, desligada do mundo. Com certeza a sua cabeça devia continuar povoada por incontáveis pensamentos. Mas ela dizia que brincava ao fazer um jogo com as palavras para tentar lembrar nomes de pessoas que eventualmente fugiam de sua memória.

Há cerca de um ano, ela começou a ter umas tonteiras, uns desequilíbrios e, em conseqüência, alguns tombos. Ela passou duas semanas num hospital fazendo todo tipo de exame, mas não se chegou a um diagnóstico preciso. Desde então, ela voltou para a Fundação diretamente para a enfermaria, pois era arriscado ir ao banheiro sozinha.

Neste último ano, instalada permanentemente na enfermaria, o seu processo de desligamento tornou-se ainda mais intenso. Ela foi se tornando cada vez mais desinteressada pela vida, pelos acontecimentos. Não fazia o menor esforço para caminhar, para tomar um sol, para se alimentar, Mas estava sempre bem humorada, com expressão tranqüila, totalmente desapegada e muito agradecida por tudo e a todos. Falava o mínimo necessário, sempre repetindo “muito obrigado”, “graças a Deus”, “está tudo bem”. Já não cantarolava mais e permanecia a maior parte do tempo dormindo ou descansando com os olhos fechados.

Eu tinha a nítida impressão de que ela estava se sentindo numa sala de espera, tal qual descreve Osho na citação acima. Os presentes que ela recebia, de natal, de aniversário, ela repassava para o primeiro que a visitasse, filho, neto, ou conhecido. Ela já não fazia questão de seus objetos de uso pessoal, de estimação, suas recordações. Não guardava nada como sendo seu.

Ela me lembrava o que acontecera com a mãe do Osho pouco antes de deixar o corpo. Dizem que lhe perguntaram, “Como você está?” e ela respondeu, “Eu estou bem”. “Mas,” lhe disseram, “os seus exames indicam que você está mal e que deve estar sentindo dores.” Ao que ela respondeu, “Ah! Você está falando de meu corpo, não é? Sim, ele está com muitas dores, mas eu estou bem.”

No dia seguinte ao seu aniversário de 88 anos, ela passou mal e tivemos que leva-la às pressas ao hospital onde recebeu medicação. Passados mais uns dias, a situação não melhorou e tivemos que interná-la. Desta vez ela não retornou mais.

Nessa sua última semana internada, eu passei ao seu lado. Sentia sua respiração, algumas poucas vezes ela abria os olhos e trocávamos olhares. Eu estava ali me despedindo dela e podendo ver como ela tinha passado por um processo de limpeza, de esvaziamento, de purificação. Ela estava partindo despojada de todos aqueles traços de personalidade que a marcaram no passado. O seu olhar era puro e seu semblante estava totalmente relaxado. Ela respirava igual a um bebê recém-nascido. Parecia que nenhum pensamento lhe perturbava. Passei muitas horas em meditação ao seu lado. Nossas energias se fundiam.

Ela fez uma série de exames e o médico disse-me que esse seu progressivo estado de desinteresse pelas coisas era decorrente de uma demência que nela se instalara já havia alguns anos. Eu fiquei me perguntando se realmente aquele seu estado era demência, ou se era uma simples manifestação da senilidade ou se era uma experiência mística sem consciência, já que ela não conhecia meditação.

Eu não consigo ver nela esse estado de demência. Ela permaneceu lúcida até ser finalmente internada no hospital. Ela sabia de tudo que ocorria ao seu redor. Mas ela reagia de modo totalmente diferente dos seus velhos padrões. Eu fico me perguntando como se instalou nela esse processo de transformação, deixando de lado os seus apegos, sua possessividade, seu espírito controlador e manipulador e tornando-se uma pessoa dócil, pura, inocente. E, sobretudo, me pergunto o que teria acontecido se ela tivesse conhecido meditação, qual teria sido o sabor de seu experimento ao passar por todo esse processo de desligamento do mundo.

“Infelizmente o Ocidente não aprendeu a lição, nem mesmo agora. Ele continua trabalhando arduamente no mundo objetivo. Até mesmo um décimo de nossa energia seria suficiente para encontrarmos a verdade interna. Mesmo um Alberto Einstein morreu em profunda frustração. Nietzsche não tinha idéia alguma a respeito de como ir para dentro (meditar). O Ocidente tem sido um lugar errado para pessoas como Friedrich Nietzsche. Se ele estivesse no Oriente, ele teria sido um grande mestre, um homem de absoluta sanidade. Ele teria sido da mesma categoria, da mesma família dos Budas.” (OSHO – God is Dead, Now Zen is the Only Living Truth – cap. 1)